Rua Lopes Chaves, 546, Barra Funda, São Paulo – SP. No mundo das letras, este endereço é famoso, faz parte de nossa história literária. Aí morou, quase a vida inteira e até a morte, Mário de Andrade, o mestre do modernismo brasileiro, o guru de tantos dos nossos maiores escritores surgidos na primeira metade do século XX e talvez o maior dos nossos epistológrafos, o homem que mais escreveu cartas entre nós, cartas que, para muitos, eram também lições sobre o “como escrever” no espírito da modernidade que veio na esteira da famosa Semana de 1922.
A casa, um sóbrio sobrado de época, pintado de branco e com janelas azuis, uma casa burguesa, de classe média, não muito grande mas confortável, ainda abriga alguns móveis de seu antigo dono, todos de jacarandá ou de alguma madeira nobre semelhante, madeira que o bicho não come, inclusive seu piano, no qual tocava para si, seus amigos e eventuais alunos. Hoje é um museu, gratuitamente aberto a todos, de terça-feira a domingo, das 10:00 às 17:30 horas, com funcionários treinados para guiar a visita, enriquecendo-a com oportunas informações sobre o escritor. Aqui cabem dois pequenos detalhes pitorescos: a casa pertenceu na verdade à mãe de Mário, mas ele, solteirão convicto, habitou-a como se dono fosse, principalmente à medida que a mãe envelhecia e depois de seu falecimento. Atualmente, vê-se, não há vestígios, no que restou, da antiga proprietária; a presença-ausência dominante é a do filho, pois tudo que lá está remete a ele. E o bairro de Barra Funda, ao contrário do que o nome sugere, não fica numa periferia distante, mas vizinho ao valorizado bairro de Higienópolis, zona nobre da pauliceia cada vez mais desvairada.
Quando eu morrer
Quando eu morrer quero ficar, Não contem aos meus inimigos, Sepultado em minha cidade, Saudade. Meus pés enterrem na Rua Aurora, Na Paissandu deixem meu sexo, Na Lopes Chaves a cabeça Esqueçam. No pátio do Colégio afundem O meu coração paulistano: Um coração vivo e um defunto Bem juntos. Escondam no Correio o ouvido Direito, o esquerdo nos Telégrafos, Quero saber da vida alheia, Sereia. O nariz guardem nos rosais, A língua no alto do Ipiranga Para cantar a liberdade. Saudade... Os olhos lá no Jaraguá Assistirão ao que há de vir, O joelho na Universidade, Saudade... As mãos atirem por aí, Que desvivam como viveram, As tripas atirem pro Diabo, Que o espírito será de Deus. Adeus.
O visitante há de quedar em silêncio após a leitura do poema. Muda reverência a quem o escreveu talvez prevendo a morte súbita e precoce, aos cinquenta e dois anos incompletos. Sobre os versos (tão modernistas), algumas observações se impuseram quando da leitura mais calma feita em casa, dias após. Inicialmente, a repetição da palavra “saudade”, o que revela o quanto doía ao poeta deixar a vida e a sua amada cidade; depois, a casa da Rua Lopes Chaves ficando com sua cabeça, o que demonstra que ali transcorreu a vida intelectual e cerebral do escritor; e, por fim, a entrega de seu espírito a Deus, o que confessa a religiosidade, anteriormente assumida ou não, do homem finito diante do enigma final. Os críticos profissionais certamente haverão de apontar outros aspectos importantes do poema, mas estes
acima citados bastam à minha leiga sensibilidade de leitor comum.Quando eu morrer quero ficar, Não contem aos meus inimigos, Sepultado em minha cidade, Saudade. Meus pés enterrem na Rua Aurora, Na Paissandu deixem meu sexo, Na Lopes Chaves a cabeça Esqueçam. No pátio do Colégio afundem O meu coração paulistano: Um coração vivo e um defunto Bem juntos. Escondam no Correio o ouvido Direito, o esquerdo nos Telégrafos, Quero saber da vida alheia, Sereia. O nariz guardem nos rosais, A língua no alto do Ipiranga Para cantar a liberdade. Saudade... Os olhos lá no Jaraguá Assistirão ao que há de vir, O joelho na Universidade, Saudade... As mãos atirem por aí, Que desvivam como viveram, As tripas atirem pro Diabo, Que o espírito será de Deus. Adeus.
Chamou minha atenção estética a beleza simples, tão brasileira, dos móveis deixados na casa. Principalmente a bela escrivaninha-estante, na qual é provável que tenham sido escritas muitas das obras do autor. É um móvel cuja sóbria imponência se impõe ao olhar respeitoso de quem o contempla. Sua presença domina a pequena sala de modo inevitável, pois invoca a imagem do proprietário estudioso e escrevinhador contumaz. E tem, noutro espaço, o piano e algumas partituras, símbolos do amor de Mário pela música, da qual não foi apenas um diletante, mas também um aplicado pesquisador e professor. A escrivaninha e o piano, emblemas do gosto e do labor criativo andradinos.
Não posso esquecer de citar a imensa foto, em preto e branco, que reuniu alguns dos modernistas de 22. Mário está lá, discreto, em pé, no lado esquerdo. Ao centro, sentado ao chão, monopolizando os olhares, a figura desafiante do rebelde Oswald de Andrade, amigo e rival do dono da casa, a quem maldosamente às vezes chamava de mulato. E a ironia (ou não) é que esse genial mulato, que nunca se envergonhou da negritude da avó, em muito superou, como artista e escritor, o seu desbocado concorrente.
Concluí a visita e saí para a rua motivado a revisitar os poemas de Mário de Andrade, os quais, confesso, não tinham me conquistado até então. Irei lê-los agora certamente com um olhar renovado, mais atento e mais sensível às palavras do poeta. O que me faz concluir que se tivesse sido apenas para isso, já teria valido a pena ter ido à casa da Rua Lopes Chaves.
Lembrando Dorival Caymmi, só me resta aconselhar: se você não foi àquela casa, então vá.