O parágrafo que abre este artigo foi retirado de A Relíquia (Edição crítica de Carlos Reis e Maria Eduarda Borges dos Santos, Lisboa, Imprensa Nacional Casa da Moeda, 2021, p. 84), uma das mais importantes obras de Eça de Queirós (1845-1900). Deixemo-lo momentaneamente de lado, para a ele retornar mais adiante.
Estou em Coimbra, acompanhando minha esposa, Alcione Albertim, que aqui realiza o seu pós-doutorado, sob a supervisão do Doutor Delfim Ferreira Leão, professor do Instituto de Letras Clássicas da Universidade de Coimbra. Seu trabalho consiste na tradução e comentários filológicos dos Mimos de Hérondas, autor grego do período Alexandrino (século III a. C.), que produziu pequenas peças cômicas e irônicas, cujos personagens são tipos populares. Ambos, Alcione e eu, trabalhamos com língua grega e latina, mas nunca esquecemos, por óbvio, da nossa querida Língua Portuguesa. Este tempo de estudo, aqui em Coimbra, tem-nos dado excelente material in loco, para a ampliação da compreensão da nossa língua e, sobretudo, do sistema linguístico.
Posso dizer que nos encontramos num laboratório de linguagem dos melhores. A cidade é bem frequentada por turistas diversos e já tivemos oportunidade de ouvir alguns idiomas diferentes do nosso, dos mais conhecidos aos mais desconhecidos: espanhol, francês, italiano, inglês, alemão, russo, ucraniano, árabe, japonês, chinês, alguma língua hindu et alii, havendo momentos em que o português é a língua que menos se fala, no burburinho da baixa ou na área da universidade.
Mesmo quando nos referimos ao espanhol, língua dos nossos vizinhos, é natural que aqui ouçamos algumas das línguas oficiais da Espanha, como o castelhano, que se tornou o espanhol-padrão, o catalão e o galego. É possível que se ouça o basco, mas duvido que eu possa perceber que se trata dessa língua... No que diz respeito a Portugal, o português predomina, mas não deixa de existir o mirandês, língua de Mirando do Douro, da região de Trás-os-Montes, cidade do distrito de Bragança, que se tornou oficial desde 1999.
Hão de me perguntar os senhores aonde eu quero chegar. Vejamos. Não vou mais me referir à maioria das línguas a que já aludi antes, tendo em vista que, em se tratando de línguas provenientes de falantes em trânsito, como é o turista, a influência que poderia haver na língua portuguesa aconteceria a longo prazo, apesar de que podemos observar algumas estruturas do francês, no português de Portugal, no léxico, principalmente, como em pequeno almoço (petit déjeuner, café da manhã), ecrã (écran, tela); algumas na estrutura, como mais pequeno (plus petit, menor) e ovos de galinhas criadas no solo (oeufs de poules élévées sur le sol, ovos de capoeira) etc.
Para o argumento que quero apresentar ao final, é importante essa interinfluência que ocorre entre os vários falares portugueses, entre eles e o espanhol e, mais visivelmente, o galego, língua de que o português proveio e se separou ainda na Idade Média, por volta do século XIV. Com a emigração brasileira para estas paragens, o sotaque, o léxico e algo da estrutura do falar brasileiro começam também a se perceber.
No local onde me encontro hospedado, o Seminário Maior da Sagrada Família, estou em contato permanente com portugueses, brasileiros — um cearense, um paulista e uma baiana, pelo menos —, com uma angolana e um cabo-verdiano. O leitor haverá de perceber que há uma variedade de sotaques ou de acentos, como queiram, muito grande. Todos se entendem, não sem dificuldades, devido aos acentos, mais abertos e francos ou os mais fechados. Mas não fica por aí. Língua falada, antes de qualquer coisa, é ritmo. Cada língua tem seu ritmo próprio e, dentro de cada uma delas, seus acentos regionais diferentes e peculiares. Fica difícil apurar o ouvido, com tantos ritmos diferentes.
O que eu poderia dizer da experiência por que passo, neste momento? Falo do ponto de vista puramente empírico, sem testes laboratoriais ou sem um número maior de falantes. Os portugueses têm uma variedade de sotaques, assim como nós,
Às vezes fica difícil perceber o que os portugueses falam, pela rapidez com que se expressam, pela contração silábica e pela elevação fonética das pretônicas /e/ e /o/, que se tornam, invariavelmente, /i/ e /u/. Assim, Portugal, jamais será dito Por-tu-gal, mas /Purtugal/, com a primeira sílaba mais rápida do que as demais. O mesmo acontece com Coimbra, prolatada em duas sílabas, /Cuim-bra/. A obra de Eça de Queirós, aqui citada no início, A Relíquia, passa a ser /Ar’líquia/. Um pequeno peixe que se costuma comer assado, mais ou menos do tamanho da nossa piaba, chama-se carapau, mas só se ouve c’rapau; alguns fazem caras e bocas, uma autêntica ginástica, para a articulação do /l/ e do /d/ e assim vai... Imagine, agora, o leitor, com a profusão dos sotaques, com as influências constantes das línguas de Península Ibérica, como seria difícil afirmar-se como se falava o português, num futuro distópico, em que não tenham sobrevivido cópias faladas das várias possibilidades de realização da linguagem, conforme vemos hoje.
Alguém poderá objetar e dizer que existem as transcrições e descrições fonéticas. Estes recursos, no entanto, são apenas indicadores de uma possível realização, não são determinantes, nem abrangem a grande diversidade
Chegamos, então, ao assunto principal que eu gostaria de discutir ou, pelo menos, de iniciar uma discussão. Diante de tantos colegas ensinando como se pronuncia o latim clássico e o grego arcaico e clássico, afirmando de maneira categórica como se lê um hexâmetro, eu perguntaria qual é o parâmetro para tanta certeza? Mesmo com relação ao hexâmetro, além da variedade de prolação dos vários fonemas, oriundos das várias partes do mundo helênico – o continente, as ilhas, a Ásia Menor, o Norte do Egito, depois a Bacia do Mediterrâneo – será que os poetas liam seus versos com prolação igual? E o ritmo? Asseguro que o fato de se reconhecer um ritmo para o hexâmetro não dá a ninguém o direito de dizer que se lê de tal forma, fixando ritmo e pronúncia, com um segurança maior de que dizer que dois e dois são quatro. A dificuldade de se afirmar uma pronúncia, em lugar de uma possível pronúncia torna-se compreensível quando temos conhecimento de que os textos de Homero e dos tragediógrafos estão recheados de termos de outros dialetos, além do jônico e do ático. Ali existem o dórico e o arcádio, pelo menos. Com o latim, não é diferente, considerando a maior expansão da língua latina, não só em extensão territorial, mas sobretudo pelo contato com várias outras línguas e dialetos. Como seria, por exemplo, a prolação do grego em Alexandria, no século III a. C.? Quero crer que não seria exatamente com a mesma pronúncia de Atenas ou da Sicília ou da região da atual Nápoles.
Na cantoria de viola, existe o verso decassílabo que serve ao martelo agalopado e ao martelo alagoano, pelo menos. As toadas de ambos são diferentes, apesar de manter o ritmo 3 por 10, três pausas fixas (3ª, 6ª e 10ª), num verso de dez sílabas. Mesmo para cada um dos gêneros, os cantadores podem criar toadas diferentes das convencionais, caso queiram.
Voltando ao início, podemos dizer que a língua quando se realiza em linguagem, apresenta muitas e variadas formas de prolação, porque há uma dinâmica na fala, além da interpenetração dos falares. Há um sotaque padrão? Há, mas seguido por um grupo, não por todos da mesma região. Assim, Por-tu-gal, Co-im-bra, Te-o-do-ri-co são mais um ideal, beirando a impossibilidade fonética. O mais normal seria a elevação fonética e a contração, dando rapidez à sílaba. No caso do nome do personagem de Eça de Queirós, teríamos /Tiodoricu/, /Tiuduricu/, /Tiudr’icu/ e /Tedrico/, como afirmou Teodorico Raposo, o Raposão, em Ar’líquia.
Imaginem, agora, caros leitores, como poderia haver muitas maneiras de se pronunciar, mesmo considerando as pausas do hexâmetro, os versos iniciais da Ilíada e da Eneida:
μῆνιν ἄειδε θεὰ Πηληϊάδεω Ἀχιλῆος
Arma uirumque cano, Troiae qui primus ab oris.