A etimologia tem sido má conselheira dos que pretendem explicar fatos atuais da língua. O uso leva com frequência ao esquecimento d...

Hipercaracterização

milharal babilonia etimologia
A etimologia tem sido má conselheira dos que pretendem explicar fatos atuais da língua. O uso leva com frequência ao esquecimento de como determinada palavra ou expressão se formou. E pode ocorrer o que em linguística se chama hipercaracterização, que é uma redundância incorporada à língua e que não é mais sentida como redundância. Assim, pretender que suicidar-se ou meio ambiente sejam incorreções por serem originalmente pleonasmos (redundâncias de sentido) é pretender que
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se recomende dizer nosco ou migo por conosco ou comigo, em que a preposição com se repete. A alteração de mecum para migo levou o falante a esquecer a preposição embutida, e repetiu-a: comigo (= cum mecum). Da mesma forma, o futuro irei ver, por exemplo, se forma a partir do esquecimento de que a perífrase com o presente de ir já indica o futuro: vou ver; o falante, então, conjuga o auxiliar no futuro, por hipercaracterização.

Não há redundância em suicidar-se, porque o sui se descaracterizou como pronome e tornou-se parte da raiz verbal. Afinal, dizemos “eu me suicido”, em que o sui ocorre sem referência à 3ª pessoa, distanciando-se de sua origem etimológica.

É por hipercaracterização que dizemos “milharal”. De taquara se origina taquaral; de banana, bananal; de laranja, laranjal, etc. De milho deveria originar-se milhal. Mas o sufixo repetiu-se: milhalal, que deu milharal por dissimilação do l do primeiro sufixo.

Em alemão, o prefixo verbal ge- representa, grosso modo, o mesmo que o sufixo -ed inglês. Assim, o verbo kommen (vir) em alemão tem o particípio gekommen (vindo); fahren (partir) forma gefahren (partido), no particípio, como o inglês love (amar) forma loved (amado).
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Em alemão, o verbo essen (comer) deveria formar gessen (comido), no particípio, mas os falantes se esqueceram de que o prefixo ge- já estava explícito e acrescentaram de novo o prefixo: gegessen, que é o particípio atual de essen. Ocorreu com gegessen o mesmo fenômeno que ocorreu com milharal, conforme vimos: hipercaracterização (caracterização do que já estava categorizado).

Condenar ou justificar os usos atuais da língua pela etimologia não me parece uma atitude científica ou linguisticamente válida. Do contrário, estaríamos proibidos de usar músculo (que significa “ratinho”) ou hidrofobia (que significa “horror à água”), ou clavícula (que significa pequena chave), ou rival (do latim rivus, rio, designativo etimológico de ribeirinho, isto é, do habitante das margens do rio) por exemplo, com o sentido que atribuímos hoje a tais formas.

Os tropos também contribuem para afastar a etimologia das explicações de fatos linguísticos atuais, como a metonímia e a catacrese (que é uma metáfora cristalizada), por exemplo. É por catacrese que dizemos pé de mesa, barriga da perna, braço de poltrona, céu da boca, asa de xícara, ou expressões como andar a cavalo num burro, embarcar num ônibus, enterrar uma agulha no dedo. É por metonímia que usamos nomes de marcas registradas
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para produtos similares de outras marcas, como chiclete, gilete, modess, etc.

A etimologia apenas indica e explica a origem das palavras, sem implicações semânticas. Assim, pela etimologia, sabemos que Lúcifer, de origem latina, significa “o que leva (ferre) a luz (lux)”, equivalente ao grego fósforo. Ora, pela etimologia, Lúcifer poderia designar Jesus Cristo, mas passou a designar o diabo por um erro de interpretação dos doutores da Igreja, em duas passagens de Isaías, cap. XIV: o versículo 4, em que Isaías fala do rei da Babilônia, e o versículo 12, em que o rei caiu do céu e é chamado Lúcifer, tradução latina do hebraico ben-xabar (filho da aurora), designativo da estrela-d’alva. Os doutores da Igreja viram semelhança entre o que Isaías dizia a respeito do rei da Babilônia e a queda do anjo mau na mitologia cristã. E Lúcifer passou a ter um significado ruim, apesar da etimologia.

Um caso mais recente de hipercaracterização em português é a expressão canja de galinha. Originalmente, canja é caldo de galinha com arroz. O falante esqueceu a significação primitiva e reforçou-a: canja de galinha, o que me parece construção legítima, ou, pelo menos, legitimada pelos usuários cultos da língua, uma vez que, se existe canja musical, como a que terminava os programas de entrevista de Jô Soares, na televisão, se torna necessário especificar a canja de que se fala.

padre vigario sacerdote verbo vicario
José Augusto Carvalho, mestre em linguística pela Unicamp e doutor em letras pela USP, é autor de vários livros sobre língua e linguística, como Problemas e curiosidades da língua portuguesa, Brasília: Thesaurus, 2014, e Gramática superior da língua portuguesa, 2.ed. Brasília: Thesaurus, 2011, entre outros.

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