Meu amigo, José Nêumanne Pinto, muito bom dia!
No dia do seu aniversário (18 de maio), dois motivos me impelem a não esquecer o amigo. O primeiro é parabenizá-lo por mais um dos muitos outros anos que você haverá de passar ao lado de sua muito amada família, Isabel e Arthur; o segundo é José Saramago, de que somos ambos leitores fiéis. Não se admire o amigo, pelo fato de o grande escritor ser um dos provocadores dessa minha efusiva lembrança. A razão é um tanto incidental, mas de grande importância, ao menos para mim, neste momento em que estou ausente e vivendo nas terras distantes da romana, goda e moura Conímbriga.
Explico-lhe a seguir o motivo. Estou em Mafra, após uma viagem bem dificultosa para chegar a estes sítios históricos. Vim, exclusivamente, para ver o imponente Convento que também abriga o Palácio Nacional, constituindo uma grande e memorável obra do engenho humano. Encontro-me, literalmente, no ventre desta imponência, construída a mando de D. João V, rei de Portugal, de modo a pagar a promessa feita aos Franciscanos, em 1711, com a esperança de tornar fértil D. Maria Ana Josefa, a rainha que, “provavelmente, tem a madre seca” (p. 9), concedendo-lhe um herdeiro.
A viagem às cegas foi uma expectativa só, levando-me, mais e mais, ao deleite com as descobertas do percurso; experimentando na memória as dificuldades enfrentadas com o transporte da “mãe da pedra” até o Convento (p. 270). Aquela com mais de 2000 arrobas, para a qual serão necessárias 200 juntas de boi, puxando-a com esforço épico, pelos curvos e estreitos caminhos, a que não faltam íngremes ladeiras, vencidas com o auxílio de 600 homens, para coordenar os freios necessários ao bom sucesso da empreitada. Uma verdadeira batalha, descrita magistralmente, como sabe o amigo, por José Saramago na fantástica narrativa de Memorial do Convento (62ª edição, Lisboa, Porto Editora, reimpressão de 2021).
Como símbolo dessa luta desigual “da espingarda contra a flecha”, no dizer de nosso querido e nunca suficientemente louvado Augusto dos Anjos, destaca-se Francisco Marques – com quem, suponho, não ter qualquer parentesco –, que morre esmagado durante o fatigante e titânico esforço, numa autêntica metonímia dos demais trabalhadores, para quem “não podem ser as galés piores do que isto” (p. 282).
Não se pode negar, meu amigo, ser o Convento e Palácio Nacional uma maravilha de engenharia e arquitetura, iniciada com a instalação da pedra fundamental, em 1717, evento dispendioso em que teria sido consumida a fortuna de 200 mil cruzados. Fala-se muito, Nêumanne, na sua edificação, do enorme gasto, financiado com as riquezas, fruto do espólio das colônias, mas esquecem de citar o sangue dos pobres trabalhadores portugueses que ali perderam sua vida, instalados na precária vila construída para aquele propósito, a Ilha da Madeira. A opulência, meu amigo, suplanta as mortes e os sacrifícios ali feitos, porque, como diz Saramago “esses são baratos” (p. 148):
“... e dos lugares que hão de ser Brasil o açúcar, o tabaco, o copal, o indigo, a madeira, os couros, o algodão, o cacau, os diamantes, as esmeraldas, a prata, o ouro, que só deste vem ao reino, ano por ano, o valor de doze a quinze milhões de cruzados, em pó e amoedado, fora o resto”.
p. 250
Riqueza e prodigalidade suficientes, para ampliar o convento inicial, para 13 frades franciscanos, em um espaço para 80, novamente ampliado para 300, sem contar todo o corpo de auxiliares, a cargo do arquiteto João Frederico Ludovice (Johann Friedrich Ludwig) “alemão escrito à portuguesa” (p. 309). Aos olhos do rei, a despesa pagar-se-ia com as riquezas extorquidas das colônias, ainda que o Guarda-Livros real advirta o rei que os sacos dos fundos reais estavam longe de Mafra, “um no Brasil, outro na Índia” (p. 314).
Estar neste momento dentro do Convento, subindo suas muitas escadas, andando por seus longos corredores, cuja basílica será “gigantesca fábrica que será o assombro dos séculos” (p. 180), é ter a rara oportunidade, meu amigo, de contemplar e apreciar este monumento-personagem, fachada literária para dar vida ao grande Baltazar Mateus, o Sete-Sóis, e a sua Blimunda Sete-Luas. Sinto-me, na realidade, tal a magnitude do edifício, jogado, literalmente, dentro das páginas de Saramago.
Ao subir ao telhado do Convento, após ver a engenhosidade dos carrilhões Norte e Sul, sentindo o vento frio neste final de primavera, soprando das bandas “da Ocidental praia Lusitana” de Ericeira, pareceu-me ver passar, num relance, meu amigo, o Padre Bartolomeu Lourenço de Gusmão, o Voador, cientista com estudos na Holanda, doutor em Cânones por Coimbra e inventor, na sua passarola, impulsionada pelas vontades capturadas por Blimunda e capitaneado pela força de Baltazar, apesar de sua única mão:
“O mar está longe e parece perto, brilha, é uma espada caída do sol, que o sol há de embainhar devagarinho quando descer no horizonte enfim se sumir”.
p. 117
À saída do Convento, após quase quatro horas a percorrer apenas o que estava disponível à visitação, cobrindo talvez um terço do que é o monumento, veio-me a certeza, meu amigo Nêumanne, que não me era necessário ter a visão interior de Blimunda Sete-Luas, para sentir nas fundações e na estrutura das altas e robustas paredes levantadas, “grossas como muralhas de guerra” (p. 236), que a argamassa que as une é a da exploração dos miseráveis d’além e d’aquém mar. E mesmo que a tivesse, meu amigo, eu já não estava em jejum, já comera meu pãozinho com côdeas matinal...
Imagens: Alcione Albertim / Milton Marques Jr
José Saramago é, sem dúvida, genial ao retratar com fina ironia e humor essa antítese de opulência e miséria, num belíssimo livro, que sei ter a sua preferência dentre aqueles por ele escritos.Fique, portanto, meu amigo, neste dia que é seu, o registro desta visita que me fez sentir-me parte do livro do seu xará.
Um grande abraço, do seu amigo,
Milton Marques Junior