Quanto mais lemos o Novo Testamento, particularmente os Evangelhos, mais nos convencemos de estar diante de uma excepcional alegoria.
Para explicar o que dizemos, partiremos de dois pressupostos que, aparentemente, se opõem. O primeiro é que tudo o que foi relatado pelos quatro evangelistas – Mateus, Marcos, Lucas e João – é a mais pura verdade, devendo ser entendido como ali se encontra.
O segundo pressuposto é que todo o relato é simbólico. Por mais que pareça uma contradição em regra, percebemos que os dois pressupostos são faces distintas de uma mesma situação.
Se tomarmos o que está exposto nos Evangelhos ao pé da letra, teremos de ter o cuidado de entender o que ali se narra, dentro do contexto em que foi escrito. Contexto temporal e social, logicamente. Os textos aplicar-se-iam, então, a casos específicos e a pessoas e situações não menos específicas.
Se tomarmos o escrito como simbologia, e aí entra um processo alegórico, perceberemos que o específico se alarga e ganha contornos universais e atemporais. O que acontece com Mateus ou Madalena, por exemplo, acontece desde sempre e com muitas pessoas.
Assim entendendo, não importam, para a boa mensagem, modo como podemos traduzir do grego o termo Evangélion (Εὐαγγέλιον), os nomes ou as pessoas, mas o que elas representam simbolicamente ou alegoricamente. Traduzindo: fala-se disto, para se dizer aquilo. O isto é particular, o aquilo, que se esconde sob a capa linear do isto, pela sua complexidade e pela sinuosidade do pensamento, é universal.
Para que fique mais claro ainda, peguemos o exemplo do que Jesus diz aos seus discípulos, de acordo com o que se encontra em Marcos (16: 15-20): “Ide e pregai o evangelho; se crerdes, falareis em línguas, expulsareis demônios e curareis as pessoas, pondo as mãos sobre elas”. Isso foi dito para os apóstolos, de modo específico, num tempo específico, após a ressurreição de Jesus, com as atribuições específicas da atuação do Espírito Santo sobre cada um deles. Jesus os envia ao mundo, daí o sentido de apóstolo (ἀπόστολος), cuja raiz é a mesma de epístola (ἐπιστολή), como uma continuidade de si próprio, para a veiculação e multiplicação da boa mensagem que ele trouxe para todos não apenas para os hebreus: Deus é Amor. Eu sou o caminho, para esse Amor, através da Verdade, que assegura a Vida. A ida para Deus não se fará de outra forma. Ide e pregai, portanto, o que eu vos ensinei, acreditando e tendo fé no poder que emana desse Amor.
Muito bem. Essa foi a missão entendida ao pé da letra, para os apóstolos. E para nós, o que nos foi destinado? Diríamos que nos foi dada a mesma missão, só que devemos percebê-la do ponto de vista da simbologia alegórica.
Todos devemos ser apóstolos e a nossa pregação não precisa ser feita a partir de um deslocamento físico. O que precisamos é promover um deslocamento espiritual, percebendo a vida a partir do ser espiritual que somos, vivendo, momentaneamente, na matéria. Em outras palavras, somos espíritos e estamos na matéria, e não o contrário. Se assim procedermos, seremos capazes de falar línguas, de expulsar demônios e de pousar as mãos sobre a cabeça das pessoas e curá-las. Precisamos, antes, no entanto, nos curar, entendendo que a matéria de que somos revestidos e o mundo material em que vivemos são instrumentos necessários para a elevação do espírito. São meios, não são fins.
Falaremos línguas, quando nossas ações não diferirem de nossas palavras; expulsaremos demônios, quando formos capazes de nos precaver contra o mal existente em nós mesmos e agir apenas para o bem, sobretudo o bem do outro; curaremos as doenças, quando pudermos compreender e acolher o próximo, ainda que dentro de nossas limitações.
Percebe-se, portanto, que a simbologia do Evangelho se expande, tornando-se viva, não uma letra morta apenas, repetida infinita e mecanicamente.
A mensagem deixada, tenha ela sido escrita ou não pelos evangelistas reconhecidos como canônicos nos convida a viver o Amor. Só a linguagem do Amor, acompanhada de ações que a ratifiquem, é capaz de falar todas as línguas, exorcizar todos os demônios e curar todas as doenças. Não importa se na Judeia, há dois mil anos, sendo apóstolo do Cristo, se no Brasil, atualmente, como alguém anônimo, que persevera em busca de curar-se.
Do mesmo modo, pouco importam os nomes, Mateus, Madalena, Judas, Pilatos, Caifás. O que realmente importa é que cada um, potencialmente, temos dentro de nós a Luz da divindade, pois somos centelha divina. Só temos que descobrir como acendê-la, encontrando o caminho para dentro de nós próprios, enxergando-nos honestamente, sem pieguismo, vitimismo ou culpas, e assim conseguiremos alcançar a divindade que há em nós.