Como hoje é quase um chavão, um lugar comum (que me desculpe o bardo inglês), dizer-se que há mais coisas entre o céu e a Terra do que...

Dona Zuleika

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Como hoje é quase um chavão, um lugar comum (que me desculpe o bardo inglês), dizer-se que há mais coisas entre o céu e a Terra do que possa conceber nossa vã filosofia, devo confessar que isso eu já havia constatado lá nos meus verdes anos quando uma mulher misteriosa apareceu pelos meus caminhos. Vou escrever algo que remonta àqueles dias, dizer alguma coisa dessa senhora cheia de sortilégios e lhes contar de uma situação no mínimo inusitada.

Quem seria ela?

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Agregada da granja de Ideto, japonesinho amigo meu, vivia Dona Zuleika, a cigana. Tinha cabelos negros, longos, cacheados com muitos fiapos brancos anunciando o adiantado dos anos, mas que um lenço de muitas estampas tentava esconder. Dentes de ouro e um olho de vidro. Usava saias longas e coloridas, Era alta, magra, dedos compridos e anéis esparramados por quase todos eles.

Segundo o meu amigo, essa cigana se alimentava de ovos crus, verduras e rabos de lagartixas. Tomava banho só em noites de lua cheia.

Ao lado do quartinho onde vivia fez um cercadinho onde plantava hortaliças e uma qualidade diferente de tabaco. Ela colhia as folhas desse fumo e as colocava ali mesmo num varal para secar. Depois moía a folhada desidratada, enrolava em palha de milho, acendia e passava horas dando suas baforadas.

Numa manhã de domingo, Ideto levou-me para conhecer o criadouro de lagartixas de Dona Zuleika. Alimentavam-se de larvas, e insetos. Fiquei espantado ao ver algumas sem rabo, outras com caldas menores, essas últimas, como se tivessem nascido há pouco tempo. O japonesinho explicou que a cigana só comia o rabo daqueles jacarezinhos. Depois esses apêndices voltavam a crescer naturalmente.

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Foi nesse domingo que vi Dona Zuleika pela primeira vez. Assustou-me aquele sorriso desconfiado que exibia mais ouro do que cortesias. Tentei manter minha compostura e tasquei um “bom dia” todo desconfiado. “Bom dia, homenzinho”, foi o que ela respondeu. Estendeu-me a mão que apertei com força para exibir alguma macheza. Gelada como nunca mais veria e toda a minha vida. Senti aquele arrepio quando nossas mãos se soltaram. Então ela me olhou com aquele sorriso amarelo, soltou uma gargalhada e em seguida tirou o olho de vidro.

Ideto, que estava acostumado com aquelas idiossincrasias derrubou-se em gargalhadas. Tive vontade de sair correndo, mas o desleixamento do meu parceiro conteve meus impulsos.

Depois ele explicou que Dona Zuleika, sempre que era apresentada a alguém tirava seu olho de vidro, só para ver a reação das pessoas. Deve ter se divertido com a minha.

Tive medo de voltar à casa de Ideto. Tive muita vontade de voltar lá. Lutei por uns dias com essa dicotomia. Até que lá para frente meu pai foi acometido de uma cólica renal. Lembramos das mezinhas de Dona Mitiko, a mãe de Ideto. Na verdade quem preparava essas garrafadas que curavam desde bico-de-papagaio até asma e bronquite era Dona Zuleika.

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Corremos à granja, eu e minha mãe. Dona Mitiko disse que chá de quebra-pedra era tiro e queda. Pediu para que Ideto fosse ter com Dona Zuleika e que essa preparasse o chá. Fui com meu amigo. A cigana estava defronte ao quartinho dela, sentada em um tamborete, fumando seu cigarrinho, toda feliz da vida.

Ideto repassou os ordenamentos. Ela imediatamente foi ao cercadinho e colheu uns ramos de folhinhas tenras. Colocou-o em uma chaleira de cobre cheia d’água, em seguida deixou esse recipiente sobre uma muretinha de tijolos. Não vai colocar no fogão? Perguntei ao japonês. Ela não tem fogão, ela não precisa, respondeu ele. E continuou: Fique olhando. Fiquei.

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Dona Zuleika, tirou o olho de vidro, e o deixou preso ao polegar e o indicador de sua mão esquerda, Aproximou aquela coisa parecida com uma bola de gude, como que se a geringonça estivesse olhando para a chaleira. Cada vez mais perto, até que a água ferveu. Gastou uns cinco minutos nessa tarefa, depois colocou o olho de volta naquela cara misteriosa, despejou o caldo em uma garrafinha de crush e me entregou a poção.

Fiquei sem o que dizer. Para Ideto aquilo ela normal, estava acostumados às peripécias da agregada. Nem preciso contar que uma xícara daquele chá deixou meu pai ficou novinho em folha. Não ousei contar ao pessoal de minha casa como aquela química fora preparada. Se dissesse, meu depoimento iria reforçar a fama de mentiroso que eu vinha ganhando naqueles tempos.

No jantar daquela noite, minha mãe perguntou:

_ Como é essa tal de Dona Zuleika?

_ Muito boazinha – foi só o que consegui responder.

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