É nas profundezas onde o mar guarda seus segredos mais ocultos. Quem visse, percebia como estava agitado o sono de Cilgin. Era um ser em sofrimento. Ele se contorcia, gemia, abria os braços e se encolhia. E quem fosse capaz de entrar em seu sonho, poderia testemunhar alguém penando com um pesadelo. O pesadelo de quem caía do alto de um prédio, e lutava em tormenta contra a força do vento e da gravidade, vendo o chão se aproximar como uma vertigem.
Cilgin via, sobretudo, a proximidade da fatalidade quando, de súbito, sobressaltou. Como um filme que repentinamente acaba. Num estado entre o sono e a vigília, ele provavelmente pensou: o que haverá depois da morte? Apenas o nada? E após aquele instante, para onde iria tudo que ele representava em vida?
Às vezes, mesmo consciente, vinham essas inquietações. E, quando ele não mais existisse, o que seria dele, e tudo o que ele significava? Seus sentimentos, pensamentos, sonhos, pesadelos também, tudo que apenas um ser tem. Onde seus pensamentos, especialmente, estariam guardados? Ou se perderiam simplesmente? Era pavoroso pensar assim. Pensar é talvez a mais nobre das atividades da mente. E se perder, assim, simplesmente? Mas, então, o fato é que Cilgin acordou, e despertou ainda amargurando as dores de sua queda.
Era uma segunda-feira, mas Cilgin acordou domingo. Cilgin percebeu que o sol, o cheiro, o som, não eram de segunda-feira. Havia um céu de domingo pairando acima, um perfeito teto do mundo flutuando com seus matizes claramente de domingo. Podia ver pela janela de seu apartamento. Para Cilgin, a segunda-feira era um dia maldito. Um dia de início, de incertezas, de algo que falta por vir. Domingo, não. Domingo era o dia. E aquele era o seu domingo. Mesmo se fosse uma segunda-feira, Cilgin acordou domingo.
Dava pra sentir na indolência de quem não precisa se levantar já, mas apenas quando der. Então, foi um Cilgin ainda estremunhado que fitou o teto, e começou a lembrar de fragmentos dos sonhos da noite. Na verdade, pesadelos. Pelo que recordava. Coisas de estorvar. Coisas que deixam um incômodo e que, por mais que se tente mudar de pensamento, vão estar sempre lá como um espinho encravado.
* Excerto do livro de Hélder Moura, 'A insana lucidez do ser', publicado recentemente (Editora Ideia), disponível na 👉🏽 Livraria do Luiz.
""Vê-se que a culpa é um forte componente da sua narrativa. A imagem onírica do sapo estuprado pelo porco antecipa o que se evidenciará, linhas depois, na cena do menino sendo violentado pelo adulto (meta-foricamente um “porco”, vocábulo a que se associam imundície e abjeção). A esse animal indiretamente se vincula a figura do pai, que permaneceu omisso e silencioso ante o sofrimento do menino." (Chico Viana)
""Vê-se que a culpa é um forte componente da sua narrativa. A imagem onírica do sapo estuprado pelo porco antecipa o que se evidenciará, linhas depois, na cena do menino sendo violentado pelo adulto (meta-foricamente um “porco”, vocábulo a que se associam imundície e abjeção). A esse animal indiretamente se vincula a figura do pai, que permaneceu omisso e silencioso ante o sofrimento do menino." (Chico Viana)