A expressão “vida de cachorro” precisa ser atualizada. Antigamente, era sinônimo de desprezo e abandono. Viver como um cão era dormir ao relento, comer sobras de refeições, levar vez por outra uns pontapés. Hoje, traduz um cuidado e uma abastança que muitos humanos não têm. O excesso de zelo com esses bichos tem chegado a preocupações sutis, como a de levá-los a terapeutas comportamentais.
O que explicaria essa mudança de status dos cachorros? A resposta não constitui surpresa para ninguém. A mudança se deve à solidão em que hoje vivem as pessoas, sobretudo nas grandes cidades. A cada dia fica mais difícil para os humanos dialogar, compreender, amar e fazer-se amar pelos semelhantes.
Então muitos optam pela estratégia do filósofo alemão Artur Schopenhauer. Recolhido à solidão e à misantropia, ele viveu grande parte da vida acompanhado de um cãozinho trêfego e terno, que o ajudava a meditar sobre o mundo e suas dores.
Por mais boa vontade que tenhamos com os humanos, devemos reconhecer que o filósofo não estava de todo errado. Entre gente e cão, a vantagem fica de longe com o segundo. Gente é inconstante, caprichosa, insaciável. Jamais se contenta com o amor possível que lhe podemos dar. Quer sempre mais.
Cachorro, não. Basta um afago e um osso (às vezes um osso artificial) para o tornar contente e fazê-lo retribuir em proporção maior. Outra vantagem do cachorro é que ele não nos cobra nem policia, aceitando-nos como somos. O cão de um mendigo não tem menos amor pelo seu dono que o de um milionário. Que o diga Quincas Borba, o desamparado cãozinho de Rubião, que adere sem um mísero rosnado de protesto à miséria e à loucura do seu dono.
O cachorro recebe nossos silêncios sem confundi-los com desprezo, gosta de ficar em casa e aceita nossas oscilações de ânimo sem achar que está na hora de “discutir a relação”. Não cultiva o ressentimento. É sempre possível, a um estalar de dedos, despertar-lhe a euforia de um sentimento vivo e novo.