A revista Istoé, vol. 31, nº 2042, de 24-12-08, apresenta nas p. 70-72 uma reportagem intitulada “Os fantásticos passageiros da sinestesia”, na qual declara que “apenas um a cada mil indivíduos é portador de sinestesia”, e data de 1880 a primeira descrição do fenômeno, feita por Francis Galton, primo de Charles Darwin. A sinestesia não é algo de que algum privilegiado seja portador, porque é uma mistura de sensações existente com maior ou menor intensidade nos falantes de qualquer língua. Antes de Galton, contudo, no livro de poemas intitulado Fleurs du mal, de 1857,
Charles Baudelaire, no soneto “Correspondances”, descreve o fenômeno, resumindo-o no último verso do segundo quarteto: “Les parfums, les couleurs et les sons se répondent” (Os perfumes, as cores e os sons se correspondem).
O Dicionário Houaiss define assim a sinestesia: “relação que se verifica espontaneamente (e que varia de acordo com os indivíduos) entre sensações de caráter diverso, mas intimamente ligadas na aparência (...)”. Para Massaud Moisés (Dicionário de termos literários. São Paulo: Cultrix, 1978, s.v.), a sinestesia “designa a transferência de percepção de um sentido para outro, isto é, a fusão, num só ato perceptivo, de dois sentidos ou mais.” Em outras palavras, a sinestesia é uma união (syn) de sentimentos (esthesis), a associação de sensações diferentes, que todos experimentamos de alguma forma.
Segundo Antônio Gomes Pena, no livro Comunicação e linguagem (Rio de Janeiro: Fundo de Cultura, 1970, p. 44-45), numa experiência de Uznadze, de 1923, reproduzida por seus discípulos no Departamento de Psicologia numa Universidade da Geórgia, foram apresentadas a um grupo de pessoas 42 palavras desprovidas de sentido para que apenas duas delas fossem escolhidas para nomear duas figuras geométricas, uma das quais era redonda, como se fossem elipses se entrecruzando, e a outra era uma estrela fina e comprida com pontas agudas. A maioria das pessoas escolheu o nome “takete” para a estrela e “maluma” para a figura redonda. E justificaram-se: takete dá a ideia de coisa fina, e maluma dá a ideia de coisa gorda.
O célebre soneto “Voyelles” de Rimbaud, reproduzido no verbete “Justalinear” do Pequeno Dicionário de Arte Poética, de Geir Campos (3ª ed. São Paulo: Cultrix, 1978) é uma espécie de sinestesia subvertida: a, negro; e, branco; i, vermelho; u, verde; o, azul. Normalmente se vê clareza no a e negrume no u. Acho que foi Valéry quem disse que “jour” deveria designar a noite, porque é escuro. A sensação de negrume do u é característica. Não é à toa que as palavras fúnebres da língua têm a tônica no u: urubu, túmulo, catacumba, fúnebre, Lúcifer, luto... Mesmo palavras que não signifiquem coisas fúnebres dão essa ideia, como cruz, fumo, musgo, fútil, luz, fuga, lustre, luta...
É explorando as virtudes sinestésicas dos sons da língua que os poetas transmitem sensações ou sugerem ambientes, sem precisar descrevê-los, como fez Edgar Alan Poe com o seu poema “O corvo” (The raven), ou como fez Ciro Costa , no soneto “O Escravo” (Apud: OLIVEIRA, Cleófano Lopes de. Flor do Lácio. São Paulo: Saraiva, 1967, p. 221), cujos quartetos transcrevo: “Do taquaral à sombra, em solitária furna, / (para onde, com tristeza, o olhar curioso alongo) / sonha o negro, talvez, na escuridão noturna, / com os límpidos areais das solidões do Congo. // Ouve-lhe a noite a voz tristíssima e soturna, / num profundo suspiro, entrecortado e longo:/ é o rouco, surdo som, zumbindo na cafurna,/ é o urucungo a gemer na cadência do jongo.” Repare-se no jogo extraordinário de vogais.
Casos interessantes de sinestesia, dá-no-los Victor Mercante, no seu livro La verbocromía (Madrid: Daniel Jorro, 1910), como o do enfermo que ficava surdo quando se lhe vendavam os olhos (p. 28), ou como o músico que sentia que o som da harpa era branco, que o dos violinos era azul, que o das flautas era amarelo, que o dos órgãos era negro (p.29)... A terminologia desse livro é estranha: fasogenocusia (onomatopeia), hiperacusia (acuidade auditiva exarcebada), hipocusia, estoglossia (esto = ruído), nome que Senet deu à teoria segundo a qual a linguagem humana se teria originado da imitação de sons da natureza, etc. Foi por sinestesia que um deputado, reclamando do seu salário, o chamou de “pingue”, na ilusão de que estava dizendo que era um salário “fino” (a sensação de “fino” foi provocada pela vogal i). No entanto, “pingue” significa “gordo”, “farto”! Se os seus colegas de câmara tivessem melhor conhecimento da língua, ter-lhe-iam perguntado por que reclamar de um salário gordo.