Hoje trago para vocês um pouco da minha leitura sobre o novo livro do escritor Helder Moura - A INSANA LUCIDEZ DO SER - uma fábula
O livro inicia, já na dedicatória, com uma provocação sobre a insanidade da lucidez.
No prefácio o Professor Chico Viana fala que a “culpa é um forte componente de sua narrativa”, deixando o leitor ainda mais curioso sobre a “crise do ser”, que vivendo uma “utopia” gratificante e isoladora promove se encontra solitário ao ponto de cometer suicídio.
Incrivelmente rico, intenso e desafiador.
O navegar nessa fábula foi uma viagem com tormentas e calmarias, que me fez indescritivelmente mais forte quando me levou aos meus oceanos mais profundos, descobrindo aqueles escondidos espinhos encravados na carcaça da minha alma.
Obrigada querido Helder, por mais essa riqueza.
Sei que não foi nada fácil.
Como bem diz nas páginas 34 e 35 “…[…]…se tornar escritor …[…]…vai precisar abrir suas entranhas, expor suas sendas mais secretas para o mundo. …[…]… Isso é algo estranhamente doloroso. …[…]…E sentir a dor do outro, além das próprias, é talvez o masoquismo singular do escritor. …[…]… Ou não será escritor.”
1º Dia
No primeiro dia nessa “insana lucidez do ser”, Helder, nos mostra como o acordar para o mais oculto que carregamos dói.
Explode a sensação de se perder em si mesmo. De ir contra a “verdade” construída.
A Segunda-feira sempre é tida como o dia mais difícil, aquele que se sai da zona de conforto, que se faz necessário o assumir, retornar, fazer, refazer, estar, enfrentar os outros e, principalmente, se enfrentar.
Não acordar a alma ou acordar “apenas quando der”, é manter-se inerte para a corresponsabilidade.
O “incômodo” dos pensamentos classificados como “espinhos encravados” irão resistir, existir mesmo se negados.
Cilgin ao explorar suas próprias profundezas, apesar do conhecimento que tem da psicanálise de Freud sobre os sonhos, sofre o tormento das estranhas criaturas submersas e “tragédias pessoais” escondidas e negadas, mesmo depois de serem submetidas a uma auto-adaptação. Afloram, sem terem sido adubadas desarrumando o que parecia uma perfeita “aventura de viver”. Aparecem em forma de sonhos cruéis, pesadelos.
A “outra pessoa” que deseja finalmente ser vista, emerge com o estranhamento de se ouvir, de prestar atenção naquilo que é corriqueiro, porém despercebido, como o bater do próprio coração.
É difícil, e até cruelmente dolorido ouvir “um tipo novo de som” que parece ser seu próprio som, quando ficou tanto tempo desatenciosamente enxergado.
O ápice é atingido no instante que o “apreciar” se torna “uma estranheza crescente”, chegando à “estupefação” por não sentir os outros, as coisas, enfim, nada existe além de si mesmo.
Ao reconhecer que o eterno adiar de assumir aquele agir que feriu ou aquela escolha que causou estragos maiores que realizações, vê que o caminho escolhido está deserto do que deveria existir. Suas ruas estão “assombrosamente vazias”, então se questiona sobre tudo que existia antes.
É difícil acreditar nesse vazio de uma “segunda tão domingo”.
O domingo sempre foi do jogar-se na cama, na rede, na areia da praia, nas águas mornas do não fazer nada que não tivesse vontade, e de não pensar nada além daquilo que lhe dava prazer. Mas se era segunda-feira nada disso era permitido fazer.
O encarar a verdadeira força no isolamento, mesmo tendo sido tantas vezes desejado, causa ansiedade.
Bate o coração da sua fraqueza, tantas vezes negada, subjugada. As artificialidades vividas são tão autênticas que “parecem naturais”.
Enfim, nesse seu primeiro dia da “insana lucidez”, Cilgin sente a “inelutável” e inconteste força das “coisas que sempre vêm”.
No segundo dia aparece a certeza que aquilo que aconteceu e foi banido, deixou seu rastro para que fosse encontrado. Uma máquina do tempo o mantém palpitando, vivo. E o que deveria ser apenas uma lembrança paralisa, violenta a vontade de ficar inerte.
Precisa seguir mesmo quando o mundo parece “esvaziado de vida”, e mesmo com a “tristeza infinita no olhar” é melhor continuar do que estagnar.
2º Dia
Hélder induz o leitor a refletir sobre a dualidade entre quantidade e qualidade. O ter e o ser brigam para deixar, cada qual em sua peculiar particularidade, a marca da importância no viver.
Sem, pelo menos, uma outra pessoa que pudesse fazê-lo controlar-se, ou pontuar suas atitudes e decisões era “impossível resistir” ao ter. Assim, a fuga do entender-se estava sendo capitaneada com o empanturrar a ansiedade do estar unicamente consigo mesmo devorando desenfreadamente tudo aquilo que antes apenas seu olhar realizava.
Na verdade sempre teve, como tantos poetas/escritores, ou escritores/poetas, algumas coisas no alcance da mão e no jeito de ser da singular palavra que transborda do seu profundo ser.
O ficar abarrotado de sensações, atitudes e escolhas das diversas vidas não assumidas pesa para quem pode enfrentar mas, no entanto, prefere fugir, negar e se esconder por trás da pífia desculpa de “débito contraído” ou “favor recebido”.
A confiança nas máscaras que usa é tamanha que mesmo as pessoas que conhecem cada uma delas, são desafiadas a mostrar a veracidade do contrário apresentado.
Desde muito tempo, até para seres ditos com incrivelmente “fora da curva”, o suicídio se apresentou como sendo o melhor caminho quando é necessário assumir o difícil papel do “decidir-se”. Assim, também pode ser a decisão mais viável para alguém tão comprometido em ser declaradamente melancólico.
O cotidiano solitário lhe confere o direito de se dizer livre, porém o preço dessa “liberdade” vem em forma de um cruel sofrer que se alimenta de uma dor inexplicavelmente latente e destruidora.
Na “insana profundeza” de Cilgin é possível enxergar a dualidade das consequências de escolhas desastrosas feitas no percurso. Elas cantam quando chega a hora do “sono da noite”, no momento que ele se encontra “consigo mesmo”, no palpitar intermitente de uma “sensação de que algo estava para acontecer”.
Chega o 3o dia, tão surpreendentemente domingo como o segundo.
3º Dia
As festas de cultura para o personagem não parecem ter o brilho necessário para modificar, marcar, fazer iluminar a mente dos participantes. Motivo para que no sono lhe pareça mais como pesadelo, onde os participantes são enxergados como “pequenos animais vivos, com olhos amorfos olhando por entre as pétalas” de flores sem vida.
Duas criaturas se encontram, sendo uma acreditada como suja, criada para entrar e sair dos lamaçais da vida, a outra limpa que na maioria das vezes vive em lugares molhados. Ela pacata e pacientemente com sua ágil língua combate insetos, inclusive o temível escorpião. Na fantasia de alguns escritores pode até se transformar em princesa ou príncipe.
Que terá pesado nas atitudes de Cilgin para não se livrar das garras de um sonho tão recorrente, onde descreve como “Um enorme sapo. Por cima dele, um porco. …(...)...tentava estuprar o sapo. ....(...)...cena animalesca, mais que selvagem, brutal.”
Algum episódio que marcou sua vida lhe fez se sentir um “porco” outras vezes um “sapo”. É algo que lhe faz refém, uma impensada atitude que está “congelada”, fazendo-o ter um obrigatório agir.
“A queda”. O suicídio realizado por tantos outros de espirito doído como ele, parecia uma idéia que não queria lhe abandonar, mas encontrar o vazio não era o objetivo, porém , as repostas para suas dores sim.
Mesmo justificando a satisfação do “estar só”, a alegria desse sonhado estado de solidão não chega, na verdade inexiste uma real satisfação. Parece que o passado está de volta mais vivo, mais real, implacável com sua crueza no comando. Melhor seria voltar ao antigo contexto, quando as dualidades não pesavam, quando se decidia sobre os momentos que podiam vê-lo ou não; quando era cobiçado, reprimido, enfim, havia nele um existir para alguém.
A euforia inicial passa, em seu lugar fica a frustração do não “provar nada a ninguém”, a esquisitice e o cansaço são as constantes sensações desse solitário estado de graça. Essa façanha de ter “...(...)…os próprios pensamentos …(...)...proferidos em voz alta.” é estranhamente rara.
A noite do 3o dia chega e com ela os pesadelos em caravana. embora dolorosamente conhecidos ainda assombram. O pesadelo do sapo e do porco não perde uma viagem.
Exuberância e horror compartilham a difícil passagem da noite para o dia. “E entre os devaneios noturnos e as veleidades diurnas, ele se via em um labirinto.” A quarta-feira amanhece no domingo.
4º Dia
“Ele, certamente, cometeu algo muito grave e estava sendo castigado.” Quando realmente fazemos o bem?
“O que é bem para mim, pode não ser para outros. Então o que fazer?”
“Ora, os dias já não eram mais os dias, desde que acordou domingo numa segunda-feira.”
“Jiny …(...)... olhar irônico, sardônico, …(...).”
O conhecer-se é indispensável para vencer as trevas interiores.
A leitura desse quarto dia mostra que Cilgin fez ou agiu apenas para compensar, ou ver feliz, outras pessoas por resolverem um problema, beneficiar um objetivo, concretizar uma escolha? Eis o motivo para o pesadelo voltar, mostrando que a energia negativa, obsessões, atitudes impensadas são ferramentas utilizadas para prejudicar seu próprio emocional. São “objetos cortantes” que não foram devidamente aceitos, trabalhados. O verdadeiro significado da “inconsciente arma”está escrito no próprio espírito. Desvendar sua mensagem é escolha puramente pessoal, íntima, intransferível. Quem será “aquele” que tem a capacidade de ser enxergado por nós no momento de nossa “cegueira”? Cilgin também duvida “De onde você vem, afinal, se lá fora não existe uma vivalma?” . Não é assim quando nosso outro “eu” tenta nos falar? Quantas vezes não duvidamos dos conselhos recebidos quando estamos sozinhos no carro, no quarto, no banheiro de um restaurante, e ouvimos “ei, queira não” ; “ei, vá não “; “ei, melhor pedir uma sobremesa e cair fora”; enfim, mergulhamos no “paraíso” por escolha própria, mas o inferno está apenas começando.
Geralmente respondemos igual ao personagem “Não preciso de sua companhia, quero que vá embora!” , e aquela voz amiga desaparece dando lugar a tão valorizada “liberdade de ir e vir”. Os dias passam, chegam as consequências da tão valente escolha. Aí o jeito será descascar o abacaxi ou chupar o limão; se aceitar como “inegavelmente desastrado”, seguir assumindo o resultado da famigerada independência rodeada pelos pesadelos.
O pesadelo ou sonho em que “os corpos avançam em êxtase” tem a crueza de um castigo “quando, então, percebe num relance, com estupor muito sofrimento, a pessoa com quem estava era … sua própria filha.”
Que alívio “era apenas um pesadelo” e se dá conta que a mulher com quem esteve era da mesma idade, com o mesmo encanto juvenil, qual o problema? Nenhum. “Ele era normal, afinal.”
O descaso lhe incomoda, “enquanto tanta gente passava e parecia nem se dar conta”, Cilgin segue por mais um dia com sua guerra, uma verdadeira saga entre o limpo e o sujo existente em seu dormir e acordar.
5º Dia
Já que era quinta-feira e não domingo como parecia ser, os objetos de desejos seriam adquiridos assim que fossem lembrados. “Acordou com a decisão de procurar um novo apartamento, uma cobertura”.
Assim fez, sentindo a realização brilhar conjuntamente com a euforia de ouvir “sons que, antes, nunca dera conta.”
Esse bem estar, de realizar sonhos e desejos que completa “materialmente” sua vida, consegue colocar no armário do esquecimento os pesadelos tenebrosos, aqueles temíveis e recorrentes fantasmas das noites insones que, nesse sublime instante de êxtase, dormem enquanto seu ego de riqueza se inflama de satisfação.
Afirma o autor “Mas, olha como é a mente. De repente, sem quê, nem pra quê, Cilgin lembra daquela história.”
Será que foi assim tão repentino mesmo que a trágica lembrança invadiu seu dia? Ou precisava dela para lhe trazer a realidade?
E qual era mesmo ela? Um estupro e uma morte. Os fatos ocorreram. fez surgir em crença. Usaram da fé dos homens. Depois mostraram a crua e humana realidade, o divino criado para salvar, desapareceu para aqueles que “buscavam refrigério para seus males, orando por Ana Isabel”.
Quer coisa mais irreal do que isso? Ao lembrar volta-se para seus próprios males, seu cansaço de estuprar-se, de ceder aos caprichos da carne, aos desejos alheios, apenas para não desagradar ou agradar seu corpo alucinado com o extrato de alguma uva.
Ele poderia ter fé depois de ter passado a vida sem acreditar em nada? Se sua vontade de ser escritor se concretizasse poderia imitar a vida dos personagens, daria um basta nos “sonhos e pesadelos” que “todas as noites vinham” e seguiria a vida normalmente, talvez sem sentir os sons particulares dos próprios pelos, da água lavando seu corpo, do piscar dos seus cílios, enfim, das grandes descobertas feitas nesse interminável domingo, com o barulho ensurdecedor do silêncio.
6º Dia
Segue ouvindo “o silêncio do mundo”. Na noite anterior Jiny voltou, tão real que parecia “mais concreto que ele próprio”, despertando em Cilgin a impressão de que “um fim estivesse tão próximo que já podia sentir seu bafio de fim de restos de histórias destroçadas, apodrecida pela implacabilidade do tempo.”
A concretude daquele outro veio com a necessidade de ter alguém por perto? estaria cansado do tão sonhado e desejado “estar sozinho”? Ou realmente se tratava de uma materialização daquele personagem que possuía força para levá-lo a escutar-se, escutar os sons dos outros mundos tantas vezes, para não dizer até então, desleixadamente ignorados?
Será que era tão fácil viver colocando em prática a mensagem da música do Aphrodite’s Child, “...com uma mentira, você esquece e encerra …''. ? É assim que tem vivido? A conta para encerrar os desastres das escolhas feitas lhe chega com o alto preço, um questionamento “Então, qual o sentido da vida, afinal? …porque viver?”
“... viver é imperativo…O segredo é seguir.”
Um filho faz Você se questionar sobre seu próprio ser, suas atitudes, seus posicionamentos.
Jiny parecia ser tão real mesmo não sendo uma presença vista, sentida, ouvida outras vezes. E, apesar de afirmar que sempre esteve ali, sendo o próprio Cilgin, nunca foi tão palpável.
Até quando Cilgin iria aguentar viver sem procurar ajuda para a “imensurável quantidade de infelicidade em sua vida”? E quanto mais aguentaria agir como se a vida fosse um sonho, ou como se um sonho fosse a real maneira de viver?
“A insana profundeza do ser” tem suas manifestações principalmente “nas profundezas de seu próprio oceano interior”. Lugar que às vezes nem ele se permite olhar, visitar, descortinar. Com essa correnteza de questionamentos foi “distanciando-se cada vez mais da realidade que conhecia.”
Mas, qual realidade ele conhecia se até aquele domingo/segunda, ou segunda/domingo, ele não havia percebido precisar de “uma transformação” entre o que foi e o que deveria ser, “para seguir com alguma sanidade”? Jamais se questionava sobre o agir com os outros ou consigo mesmo. Sabia que as respostas poderiam “magoar mais do que as perguntas”?
A sanidade de outros perturba, fazendo com que lembre episódios sobre suicídios daqueles que desistiram de viver.
Seria ele também importante apenas em alguma narrativa do viver de alguém?
Juízo Final
Então naquele sétimo dia acorda, como se fosse o último dia da nova criação de si mesmo. Mas, onde? Não acreditava existir nada depois da morte. Esperar. Talvez estivesse errado.
Desperta para uma nova eternidade de si mesmo, onde consegue escutar, valorizar e enxergar tudo ao seu redor, tanto os pormaiores quanto os pormenores que artes nem percebia.
Viveria o resto de seus dias com Jiny lhe despertando para as coisas valiosas nele, nos outros, na vida?
Ou será que acordou na eternidade de um local que jamais aceitou que existiria? O fato é que Cilgin ter despertado numa segunda-feira que mais lhe parecia domingo, lhe confere, caso consiga se vencer, o direito de não mais “agradar” quem o faz sentir “a violência” atravessar “seu corpo e sua alma” nos momentos que é levado a agir pelo simples prazer. Não era mais aquele menino. “O ardor em suas entranhas” ainda é uma cruel ferida que goteja vergonha, raiva e ressentimento lá na profundeza da sua alma.
Antes “imaginava como, ao longo de toda uma vida essas coisas acontecem e vão formando as relações e os afetos, de uma maneira tal que o sujeito perde a noção de quem realmente é, lá em sua essência mais funda” ; agora ao despertar neste último instante que o separa da antiga existência, poderá escolher não se estuprar por atos impensados, irresponsáveis, que lhe trarão fardos pelo resto da caminhada, e muito menos deixar que o estuprem.
Será “culpa” que carrega? Como? Ele sempre se considerou, se enxergou como vítima. Eternidade.
O mergulho nessa sua escuridão lhe fez acordar diferente, consciente do que poderia ser? Ou simplesmente “voltou ao que era” numa “luminosa manhã de segunda-feira.”?
Teria a eternidade dos seus dias para descobrir a magia da sua “dura travessia”.
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