Jacques Lacan, o célebre psicanalista francês, não foi um bom pai, no sentido convencional da expressão. Essa a conclusão a que che...

A filha de Lacan

sibylle jacques lacan um pai
Jacques Lacan, o célebre psicanalista francês, não foi um bom pai, no sentido convencional da expressão. Essa a conclusão a que cheguei após a leitura do livro Um pai: puzzle (Aller Editora, São Paulo, 2023), de autoria de Sibylle Lacan, filha do dito cujo. Vou além: se aplicarmos os critérios brasileiros de avaliação, creio que até podemos afirmar que ele foi um péssimo pai. Vejam só, quem diria.

A autora, filha da primeira esposa de Lacan, escreveu que ele foi um pai ausente, pouco carinhoso e até mesmo omisso nas suas responsabilidades de provedor de sua primeira família. Mas ela também registra seus eventuais e esporádicos méritos paternos, o que mostra sua (dela) relativa imparcialidade. Entretanto, vê-se que o saldo final é claramente desfavorável ao pai.

sibylle jacques lacan um pai
sibylle jacques lacan um pai
Sibylle Lacan / Jacques Lacan Gallimard / @Lucas Nápoli
Cada caso é um caso, claro, mas, de saída, constata-se, com Lacan, uma situação clássica e universal: o homem se separa da primeira mulher e forma nova família, desligando-se, não raro totalmente, da ex-esposa e dos filhos tidos com ela. Aí então todos os recursos materiais e afetivos do marido/pai são praticamente destinados ao novo núcleo familiar, o que termina por gerar imensos – e justificáveis – ressentimentos no grupo abandonado.

Podemos indagar até que ponto é isento esse retrato pintado pela filha ofendida. Aliás, podemos perguntar a mesma coisa relativamente a qualquer avaliação dos pais e das mães feita pelos filhos. Como em tudo, aqui entra muito forte a subjetividade dos avaliadores. E não pode ser diferente, reconheça-se. Os sentimentos e as sensibilidades quase nunca formam bons juízes, a despeito do fato de que todo juiz,
sibylle jacques lacan um pai
para ser completo, jamais pode renunciar aos sentimentos e sensibilidades, sob risco de se transformar em simples máquina julgadora, desprovida de humanidade.

Numa das passagens do livro, escreve a filha: “Meu pai vivia sua vida, sua obra, e, para nós, nossa vida parecia um acidente em sua história, um capítulo de seu passado que, em todo caso, ele não tinha como ignorar”. Como vemos, um quadro típico de casais separados, em que o homem, casado outra vez, parece esquecer ou descartar completamente a família anterior, dedicando-se com exclusividade à nova mulher e aos novos filhos, como se o que viveu antes não contasse. Evidente que também pode ocorrer que seja a mulher a abandonar marido e filhos, claro, mas é menos frequente, sabe-se.

A filha/autora viveu sempre uma situação ambígua com relação ao famoso pai. Por um lado, tinha indisfarçável orgulho de ser filha de quem era, mas, por outro, queria sua identidade pessoal, não desejava ser simplesmente “a filha de”. Isto a valoriza muito aos olhos do leitor, já que sabemos haver muito filho a viver na e da sombra do pai (ou da mãe) célebre, como parasita eterno. Mas Sibylle escreveu livros, conquistou um nome próprio respeitável. A seu modo, mostrou ao pai o seu valor.

sibylle jacques lacan um pai
Sibylle Lacan @Literary Hub
Em outro trecho, ela fala sobre os eventuais maus modos paternos. Certa vez, um motorista de táxi o expulsou do carro antes mesmo de dar partida, diante do gratuito comportamento grosseiro do psicanalista. Dá pra entender?

Ela só viu Lacan chorar duas vezes: uma, quando da precoce morte do filósofo Merleau Ponty, seu amigo; outra, por ocasião da morte de sua filha mais velha. Lembrei-me imediatamente de Graciliano Ramos que, segundo seu filho Ricardo, também foi homem de poucas lágrimas, mas não deixou de derramá-las, sem pudor, quando da morte de … Stalin. Vejam só.

Ao final do pequeno livro (127 páginas), fiquei mais uma vez refletindo sobre a complexidade do ser humano. Para os seus pacientes, Lacan foi uma pessoa, certamente benéfica e cheia de qualidades; para sua primeira família, como se viu, foi alguém bem diferente. E assim todos nós, concluí, recolhendo lentamente a pedra que no início pensei atirar nele.

COMENTE, VIA FACEBOOK
COMENTE, VIA GOOGLE

leia também