No início dos anos 1980, uma música de Rita Lee, que tocava em todas as rádios do país, evocava em sua letra o ambiente do Brasil na virada da década de 1950 para 1960:
“Numa noite de verão
Ai! Que coisa boa
À meia luz, a sós, à toa
Você e eu somos um caso sério
Ao som de um bolero
Dose dupla
Românticos de Cuba... libre”
Caso sério (Rita Lee — Roberto Carvalho)
Nas palavras da canção apareciam aspectos representativos daquele período: a Orquestra Românticos de Cuba, o “cuba-libre”, o coquetel típico da época (rum, coca e limão), e a menção implícita à revolução que, no primeiro dia de janeiro de 1959, sob o comando de Fidel Castro e Ernesto ‘Che’ Guevara, tomara o poder na ilha de Cuba. O escritor Antônio Torres rememorou aquele tempo em uma crônica no Jornal do Brasil:
“Meninos, imagino que vocês nunca balançaram o esqueleto sob a batuta dos Românticos de Cuba. Assim se chamava a orquestra (brasileira) que popularizou os ritmos de uma América outra, a hispânica, num tempo mais antigo do que as barbas de Fidel Castro e a boina de Che Guevara. O mesmo tempo do trio Irakitan cantante dos boleros que gostávamos de ouvir [...]
Sigamos de volta ás ondas de uma época na qual saracoteávamos como se estivéssemos na sonora Havana, então a mais franca zona americana com luxuosos cassinos bancados pela Máfia. Por baixo dos panos, rolavam os royalties para o ditador Fulgencio Batista. Enquanto isso, nós aqui, ainda uns rapazes imberbes inebriados pela cuba libre, adorávamos o nosso presidente JK, o seresteiro e pé de valsa. E ignorávamos a que liberdade se referia o coquetel de rum com Coca-cola. Apenas sonhávamos em ter entre os braços a bela garota de band-aid no calcanhar. Dois pra lá, dois pra cá.”
Do final dos anos 1950 até meados da década seguinte, a Orquestra Românticos de Cuba foi um dos maiores sucessos do mercado de discos do Brasil e essa famosa e apreciadíssima orquestra daquele tempo tem uma história bastante curiosa e deve a sua criação unicamente ao cantor e compositor Nilo Sérgio.Sigamos de volta ás ondas de uma época na qual saracoteávamos como se estivéssemos na sonora Havana, então a mais franca zona americana com luxuosos cassinos bancados pela Máfia. Por baixo dos panos, rolavam os royalties para o ditador Fulgencio Batista. Enquanto isso, nós aqui, ainda uns rapazes imberbes inebriados pela cuba libre, adorávamos o nosso presidente JK, o seresteiro e pé de valsa. E ignorávamos a que liberdade se referia o coquetel de rum com Coca-cola. Apenas sonhávamos em ter entre os braços a bela garota de band-aid no calcanhar. Dois pra lá, dois pra cá.”
O carioca Nilo Santos Pinto, com o nome artístico Nilo Sérgio, surgiu como cantor na década de 1940 atuando no Rio de Janeiro como crooner de orquestras, se apresentando nas rádios e gravando discos nos quais interpretava, em inglês, músicas norte-americanas. A sua fluência na língua inglesa o levou a se apresentar, em 1947, em um programa de televisão nos Estados Unidos onde teve um encontro com o cantor Frank Sinatra.
Em 1952, Nilo Sérgio resolveu criar uma gravadora de discos, a Musidisc, inicialmente com a finalidade de estabelecer parcerias com gravadoras norte-americanas que lançavam discos de música instrumental. Com um grande instinto comercial e com o conhecimento do gosto musical do público adquirido em anos atuando em orquestras, Nilo Sérgio decidiu gravar alguns discos na Musidisc. Para uma das produções resolveu procurar o maestro Severino Araújo, de quem era muito amigo, e com quem trabalhara, como cantor, na Orquestra Tabajara.
Em depoimento para o livro de Carlos Coraúcci “Orquestra Tabajara – a vida musical da eterna Big Band brasileira” (Companhia Editora Nacional, 2009), Severino Araújo relatou que, em setembro de 1958, Nilo lhe apresentou o projeto de uma gravação de um disco instrumental de boleros em que ele faria os arranjos em um formato em que seriam destacadas a seção de cordas e a parte de percussão. Mas, havia um problema. O maestro Severino Araújo era contratado com exclusividade pela gravadora Continental, o que impediria que o seu nome aparecesse nos créditos do disco.
Com os detalhes para a gravação acertados, precisaria se escolher um nome para a orquestra e que tivesse certo apelo comercial. Segundo Severino Araújo, houve relutância na escolha do nome Românticos de Cuba, em razão do momento em que estavam vivendo, no qual as forças revolucionárias cubanas que haviam descido da Sierra Maestra caminhavam para a vitória. Mas, acabou prevalecendo a vinculação de Cuba com o bolero. Após a realização das gravações, os músicos receberam os seus cachês e foram dispensados. A partir daí a Orquestra Românticos de Cuba, um grupo de músicos que fora formado apenas para gravações em estúdio, deixava, de fato, de existir. A orquestra só poderia ser ouvida em discos.
O primeiro disco da Românticos de Cuba foi lançado em 1959, com o título “Besame Mucho” contendo 24 clássicos do bolero como “Quizas, quizas, quizas”, “Quiereme mucho”, “Besame mucho”, entre outros. O sucesso comercial foi imediato e o disco logo entrou nas listas dos mais vendidos e, curiosamente, como pouco se sabia da origem da orquestra, colocado no segmento internacional, superando até um disco de Elvis Presley, como se vê nesse ranking do Diário Carioca:
A crítica também foi favorável ao disco de estreia da Românticos de Cuba. Ary Vasconcelos, um dos mais respeitados críticos de música popular do país, escreveu em O Jornal:
“Um dos melhores LPs de boleros já lançados na praça. Para começo de conversa, a seleção é perfeita. Foram escolhidos, a dedo, boleros de primeira água. Não entrou nenhum ‘mais ou menos’. Só o ‘creme’ do assunto. A Orquestra Românticos de Cuba à base de cordas e com um ritmo gostoso funciona realmente às mil maravilhas, acentuando por uma e outra forma a beleza melódica das diversas músicas. Ótimo para dançar e ótimo para ouvir”
O êxito do primeiro disco da Românticos de Cuba levou a Musidisc a lançar, ainda em 1959, um novo disco da orquestra com o título “Quiereme mucho”. Desta vez, além de clássicos do bolero, foram incluídas músicas brasileiras e sucessos internacionais, mas devidamente abolerados pelos arranjos de Severino Araújo. Ary Vasconcelos, mais uma vez, deu ao disco uma cotação quase máxima:
“É provável que não exista em Cuba uma orquestra de boleros tão boa como a brasileiríssima ‘Românticos de Cuba’. Por artes do feiticeiro Nilo Sérgio, nossos músicos vestiram roupas típicas de Cuba e do México e passaram a executar boleros & anexos com bossa local. O resultado é um novo LP esplêndido com os Românticos mais românticos de Cuba e transformando até músicas brasileiras (‘Se alguém telefonar’, ‘Castigo’) e americanas (‘Till’, ‘Love letters’) em ondulantes boleros”
O sucesso estrondoso da Românticos de Cuba extrapolou o mercado brasileiro. No final de 1959, a Musidisc publicou na revista norte-americana Cash Box anúncio de página inteira divulgando a orquestra e, logo em seguida, a gravadora abriria um escritório nos Estados Unidos. O êxito internacional da orquestra pode ser avaliado por um episódio. Em 1961, conforme relato de um filho de Nilo Sérgio ao jornal O Globo, quando da frustrada invasão de Cuba por grupos de exilados cubanos com o apoio da CIA, o escritório da Musidic nos Estados Unidos foi invadido por “competentes” agentes do FBI, que imaginavam que a inofensiva e brasileira Românticos de Cuba tivesse ligações com os partidários de Fidel Castro.
O sucesso comercial da orquestra obviamente levaria a novos discos usando a fórmula que vinha dando certo. De outubro de 1958 a maio de 1962, foram gravados cinco discos da Românticos de Cuba com arranjos do maestro Severino Araújo. A bem da verdade, são os melhores discos que foram feitos pela orquestra de estúdio. Mas, o sucesso da Românticos de Cuba acabou incomodando a gravadora Continental, que tinha o maestro como contratado e o proibiu de continuar fazendo arranjos para Musidisc. A Continental tentou, sem êxito, uma fórmula parecida, criando a Orquestra Romântica de Severino Araújo.
Severino Araújo, em depoimento para a obra de Carlos Coraúcci sobre a Orquestra Tabajara, demonstrou não ter boa lembrança do seu trabalho para a Românticos de Cuba:
“Eu nunca gostei e muitas vezes senti ódio da Românticos de Cuba. Uma orquestra que nunca existiu e sempre enganou o meu povo. Sou brasileiro e tudo que engana meu povo não tem a minha simpatia”.
A Musidisc também conseguiu êxito com outros artistas fictícios. Um deles, de nome Bob Fleming, na realidade o notável saxofonista Moacyr Silva, fez vários discos para a gravadora. Outra orquestra de estúdio criada na Musidisc e que fez relativo sucesso foi Os Violinos Mágicos (com arranjos do maestro Leo Peracchi). A saída de Severino Araújo não parou a produção da Românticos de Cuba. Dois dos mais importantes maestros do Brasil foram recrutados por Nilo Sérgio para fazer arranjos para a orquestra: Lyrio Panicali e Radamés Gnattali. Mas, o tempo havia mudado, a fórmula havia se esgotado e os sons saídos do Cavern Club de Liverpool começavam a se espalhar pelo mundo afora.
Apesar de passados 65 anos do lançamento do primeiro disco da Românticos de Cuba, não custa nada tentar fazer uma experiência simples. Coloquem pra tocar um dos primeiros discos da orquestra, aqueles da fase do maestro Severino Araújo (todos disponíveis em plataformas digitais como o Spotify). Em pouco tempo, vai dar vontade de dançar “dois pra lá, dois pra cá” no ritmo do bolero. Naturalmente, agarradinhos. Como sugestão, ouçam a transformação que a batuta mágica de Severino Araújo fez com a canção francesa “Danse avec moi” na gravação da Orquestra Românticos de Cuba: