Os leitores devem conhecer os personagens de Gil Vicente, no Auto da Lusitânia (1531-32), o rico mercador Todo o Mundo e o pobretão Ninguém, que se encontram e dialogam, sendo ouvidos por Dinato e Berzebu, dois demônios, encarregados de fazer a Lúcifer o relato do que as pessoas buscam. Seguindo a tradição, pois Drummond fez uma recriação da cena, eu também resolvi recriar alguns diálogos.
Depois de dar uma olhada nas redes sociais, acompanhando os imbróglios do jaboticabal brasileiro e de ler os doutos se digladiando, só Gil Vicente para nos acudir.
1.
Todo o Mundo e Ninguém dão a sua opinião
sobre ideologia para o povo da nação.
Todo o Mundo se expressa de maneira bem esperta:
“Sou convicto de esquerda, posição mais do que certa!”.
Já Ninguém radicaliza e afirma sem ter medo:
“Comunista é o que sou, aprendi ainda cedo!”
Vejam só como é que é meu Brasil surrealista:
Todo o Mundo é de esquerda, mas Ninguém é comunista.
2.
Todo o Mundo e Ninguém se encontrando de repente,
começaram a revelar o que há em sua mente.
– Ouve aqui, ó Todo o Mundo, vou dizer de coração,
sabes que eu percebi que tu sempre tens razão?
– Ó Ninguém, não é assim, eu já vejo de outro lado,
eu já acho que és tu o que nunca está errado.
Vejam só como termina esta breve reunião:
Ninguém nunca está errado e Todo o Mundo tem razão.
3.
Todo o Mundo
Que esperas encontrar, na viagem que inicias?
Ninguém
Encontrar obrigação, preencher horas vazias.
Ninguém
E tu o que estás buscando, ao fim de nossas vias?
Todo o Mundo
Vou buscando meus direitos, em meio às algaravias.
Berzebu para Dinato
Toma nota, ó Dinato, do perfil dessa nação:
Todo o Mundo quer direito, Ninguém quer obrigação.
4.
Todo o Mundo e Ninguém
estão os dois, em plena ação,
no caminho a percorrer:
Todo o Mundo procurando,
o que Ninguém há de obter,
e Ninguém vai satisfeito
até Todo o Mundo ter.
Ninguém
Inda esperas, companheiro, muita coisa encontrar?
Todo o Mundo
Eu espero o SABER, que me pode ilustrar.
O saber também procuras, para te iluminar?
Ninguém
Eu procuro muito esforço, que se chama ESTUDAR.
Dinato para Berzebu
Toma nota, meu amigo, do que estamos a escutar:
Todo o Mundo quer SABER, mas Ninguém quer ESTUDAR.
5.
Caminhando sem destino, encontrei dois viajantes.
Um Ninguém era chamado e eu nunca vira antes;
era o outro Todo o Mundo, afamado, conhecido,
em qualquer lugar da terra sempre foi bem acolhido.
Perguntei-lhes, meus amigos, o que procurais fazer?
Todo o Mundo respondeu procurar só o lazer.
Já Ninguém me disse ser trabalhar sua procura,
pois, durante muito tempo, estivera em clausura.
Eu pensei no que disseram e escrevi para lembrar:
Todo o Mundo quer lazer e Ninguém quer trabalhar.
6.
Todo o Mundo e Ninguém, em mais uma empreitada,
resolveram no destino promover uma guinada.
Todo o Mundo, à vontade, confessou-me sem ter medo,
e me disse “– Busco brilho, nada disso é segredo”.
Já o outro, esforçar-se, disse sempre estar disposto.
Que projetos excelentes! Que virtudes honoráveis!
Jamais pude imaginar fossem planos tão amáveis!
Pois a vida, meus amigos, é difícil de mudar:
Todo o Mundo quer ter brilho, mas Ninguém quer se esforçar!
7.
Mal raiava o Ano Novo, Todo o Mundo e Ninguém
se abraçaram efusivos, se disseram estar bem.
Perguntou a Todo o Mundo já Ninguém, de imediato,
como há de se fazer com o amigo um belo trato.
“Belo trato é a Justiça”, Todo o Mundo respondeu.
“Só se for com Punição”, já Ninguém aquiesceu.
Vede, pois, amigos meus, neste ano a Inovação:
Todo o Mundo quer Justiça e Ninguém quer Punição.