O que Cristo escrevia? As pessoas em redor, em grande burburinho, agitadas, com pedras na mão, apontavam para uma pobre mulher, acusada de adultério, caída, coberta pelo opróbrio, e Jesus Cristo, demonstrando uma tranquilidade que não se coadunava com o momento, escrevia na areia. O que ele escrevia? Não se sabe. Ninguém sabe. Não restou uma frase, uma palavra. Não restou uma letra sequer. Por que em momento tão grave,
Jesus decidiu escrever na areia? Por que não fez um discurso veemente? Por que não escreveu um libelo? Qual seria a importância de escrever alguma coisa que se julgasse relevante para o momento?
São muitas as perguntas, mas nenhuma resposta. Ao menos, respostas óbvias. O evangelista João, no entanto, deixa nas entrelinhas qual o significado de toda aquela cena. Dos quatro evangelistas, João é o que vai ao âmago da palavra de Jesus, tornando-o substancial, substantivo — Pão da vida, Pão que desceu do Céu, Pão vivo, Luz do mundo, Água viva, Porta das ovelhas, Belo Pastor, a Ressurreição e a Vida, Mestre e Senhor, o Caminho, a Verdade e a Vida, Vinha Verdadeira —, principalmente como ser absoluto: Eu Sou.
João sabia e sentia, como o mais amado por Jesus, que nada que se escrevesse naquele instante teria tanta importância, quanto uma atitude tomada, com o sentido de questionar o ato brutal, que estava para se perpetrar. Tanto é que João é o único a apresentar o episódio da mulher acusada de adultério (8: 1-11).
Escrever impassivelmente na areia, enquanto o clima fervia entre as pessoas que cercava a mulher acusada, leva os Fariseus a tentar comprometer Jesus Cristo, como fizeram outras vezes, com relação ao cumprimento da lei mosaica. Não contavam eles que Jesus não veio para desobedecer a lei, mas para cumpri-la, ainda que parecesse aos olhos e à compreensão limitada dos que seguem a lei, sem qualquer reflexão ou espírito crítico, que ele a estava descumprindo.
Sem sabermos o que escrevia, Jesus, mais do que interrogado para dar um parecer, foi inquirido, para ser igualmente acusado, e devolve a pergunta com um gesto simples e com palavras audíveis e compreensíveis, mesmo para uma horda de brutos, que estão instigando e sendo instigados ao apedrejamento da mulher acusada, apedrejamento até a morte como manda a lei, o que atiça ainda mais a sanha dos acusadores, de dedo em riste: “Aquele de vós que não tiver pecados, que atire a primeira pedra”.
As pedras, que deveriam ser lançadas para a morte da acusada, pesaram nas mãos dos acusadores e foram caindo uma a uma, assim como foram se dispersando e desaparecendo os que estavam prestes a apedrejá-la. Quanta pesaria uma pedra, apanhada a esmo, ali no caminho? Duzentos gramas? Trezentos? Qual seria o peso necessário de uma pedra, suficiente a infligir a dor e a matar alguém? Também não importa, porque não foi o peso ou a massa da pedra que a fizeram deslizar das mãos e cair na terra, em lugar de atingir o corpo da mulher. Foi a gravidade. Não a gravidade como lei física universal, mas a gravidade das palavras lançadas por Jesus à multidão, que, embora poucas e simples, pesaram e feriram mais do que a pedra mineral, instrumento de punição legal.
A gravidade das palavras de Jesus reverberou na carne e, muito mais, no espírito de cada um dos presentes, prontos a promover a morte. Suas palavras apenas faladas tiveram o condão de fazer cada um remover o seu dedo apontado contra a acusada, direcionando-o contra si próprio. Nesse momento, Jesus planta no seio de cada um a dúvida com relação à lei e a si mesmo. É o momento em que a morte, que precisa do suporte da lei cega, é vencida pela Vida, que exige reflexão. Quantos daqueles que ali se encontravam viram a mulher adulterar? Os escribas e os fariseus a trouxeram, e a acusaram de ter sido apanhada em adultério, jogando-a por terra, como se nada fosse, como se fosse uma coisa. Quem a denunciara, para que o flagrante acontecesse, o marido dela? A mulher do homem que com ela adulterou? Foi-lhe dado algum direito de defesa ou o simples fato de acusar era suficiente para que a pena fosse imposta e a multidão tivesse o direito de acusá-la, julgá-la e condená-la sumariamente, porque se encontrava previsto na lei mosaica?
Quando se evoca a lei sem o direito de defesa e sem a reflexão necessária sobre o caso exposto, contando com o apoio de uma multidão que quer vingança, o resultado é a lapidação pública, real ou metafórica. Ninguém presente contestou a lei, lei dos homens, vendo-a como um contrassenso com a Lei de Deus. Bastou a razão da autoridade chegar, puxando a mulher, jogá-la por terra e acusá-la de adúltera, para que todos se vissem imbuídos do direito de condená-la e matá-la.
Nem o Estado tem o direito de se vingar, cabe-lhe punir, mas sem se ater a uma visão limitada da lei, porque as leis caducam, e deve haver reflexão e juízo crítico que levem à sua mudança.Se a Lei Divina diz que não se deve desejar a mulher do próximo — o que deve se aplicar para o homem do próximo —, jamais se refere que a punição para o caso seja a morte. A mesma Lei Divina interdita matar, sem que seja para uma legítima defesa. É o que diz o “Não matarás” do Decálogo, cujo sentido é “Não assassinarás”. A pena que se queria aplicar à mulher expressa a contradição entre o que Deus determina e o que os homens dizem.
Jesus, com a sua placidez, com as poucas palavras pronunciadas, demonstrou a que veio: “Eu vim para que todos tenham vida e a tenham mais abundantemente”, conforme se encontra em João, no belíssimo Capítulo 10, que trata do Belo Pastor. Ao dar o benefício da dúvida à mulher acusada, Jesus semeia a reflexão em cada um dos corações dos que desejavam matá-la. Vida, e não morte, é o que se deve procurar; perdão e não vingança. Nem o Estado tem o direito de se vingar, cabe-lhe punir, mas sem se ater a uma visão limitada da lei, porque as leis caducam, e deve haver reflexão e juízo crítico que levem à sua mudança, desde que seja para o benefício de todos, não de um grupo, não de alguns, não com o intuito de vingança.
Dispersa a multidão, Jesus demonstra que nada é mais forte do que a capacidade de perdoar: “Vai e não peques mais”, diz ele à mulher. Os erros são para que aprendamos com eles, não para que permaneçamos neles. Novamente, com simples palavras, Jesus dá à mulher acusada e vilipendiada publicamente, a oportunidade de ressuscitar em vida, de ter uma nova vida. De escrever uma nova história para a sua vida. Se não podemos consertar o passado, podemos dar outro final ao nosso futuro, com a segunda chance que nos for concedida.
O que escrevia Jesus? Não, não há como saber, mesmo porque o que foi escrito na areia não resistiu por muito tempo. Com o dispersar da multidão, tudo foi apagado. Mas ficaram as Suas palavras, para toda a eternidade, como prova do perdão e do amor, prova, sobretudo, de que, como diz Paulo, “A letra mata, mas o espírito vivifica” (τὸ γὰρ γράμμα ἀποκτείνει, τὸ δὲ πνεῦμα ζωοποιεῖ, 2 Coríntios, 3, 6).
Quem se diz capaz de amar, deve ser capaz de perdoar.