A morte de um médico sempre nos desconcerta. Ele, que cuidou de tantos, prolongou tantas vidas, não pôde salvar a si mesmo. Um operário...

O médico das letras

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A morte de um médico sempre nos desconcerta. Ele, que cuidou de tantos, prolongou tantas vidas, não pôde salvar a si mesmo. Um operário das letras, um cirurgião na medicina: Moacyr Scliar. “Moacyr”, filho da dor. “Scliar”, vidraceiro (vem do russo). Esse escritor compôs seus vitrais com afinco, com seu intelecto e amor.

Um intelectual é alguém que utiliza o conhecimento absorvido em prol da humanidade. Um erudito é um glutão, um obeso de espírito, que reteve os saberes livrescos e não os deglutiu. O autor de “O exército de um homem só” é, indiscutivelmente, o primeiro.

O encantamento pela palavra do autor de “O centauro no jardim” começou na sua tenra infância, quando ouvia as histórias e, como todo leitor voraz, acabou desejando escrever as suas próprias. Seu pai, percebendo que o filho era rendido às letras, deu-lhe uma máquina de escrever de um modelo desprovido de acentos gráficos. Moacyr conta que fazia a acentuação de próprio punho. O engraçado era que esse não era, a princípio, o objeto por ele tão almejado; Scliar queria uma bicicleta.

Foi de sua mãe que adquiriu o gosto pela leitura: “Minha mãe me levava à tradicional Livraria do Globo e eu podia escolher à vontade”. A família era humilde, mas Sara, sua mãe, sempre ressaltava que podia faltar comida, mas não livros.

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Moacyr Scliar@rs.gov.br
Conheci Moacyr, pessoalmente, no dia 26 de novembro de 2010, durante o primeiro seminário de literatura do Sesc – João Pessoa. Apresentei-me, e Scliar foi muito educado, como sempre. Entreguei-lhe o meu “Versos versáteis”, meu segundo livro de poemas, prometendo-me dar suas impressões de leitura. Não acreditei na promessa, e fui surpreendido algum tempo depois com um e-mail de sua autoria, no qual ele afirmava: “Devo dizer que raramente vi um talento tão grande e tão precoce! Tenho certeza de que você vai fazer uma grande carreira literária. Receba os parabéns e o abraço, do Moacyr Scliar”.

Nessa visita a João Pessoa, alegrou a plateia. Contou que participou, aos 18 anos, do seu primeiro concurso literário, promovido pela “Folha da Tarde”, jornal de Porto Alegre. O tema era Dia dos Pais. O prêmio? Era uma passagem de avião? Um cheque? Não! Um papelzinho no qual havia “Vale um par de sapatos”. Quando chegou à loja para pegar a grande premiação, escolheu o par de sapatos que acreditou ser feito de pele de crocodilo. Apresentou-se ao dono da loja, que logo disse não ter direito a estes. Custavam muito caro. Mas, acabou comovido e permitiu a Moacyr levá-los, contanto que pagasse a diferença. Então, foi assim que Scliar tornou-se o primeiro escritor a pagar por um prêmio literário.

A primeira vez que tive contato com a sua obra foi com “O mistério da Casa Verde”, quando eu estava na 1ª série do Ensino Médio. Moacyr teve muitas de suas obras canonizadas, mas, mesmo com a imposição no que diz respeito da escola para com as leituras, devo dizer que o prazer foi imediato e foi graças à sensibilidade desse escritor que descobri Machado de Assis. Por quê? Porque nesse livro Scliar apresenta “O Alienista”, de Machado, e, como sabemos, muitos adolescentes não leem obras clássicas. Dessa forma, convidou muitos jovens a conhecer grandes mestres da literatura, visto que se utilizou da intertextualidade, ou seja, o diálogo com outros autores em diversas outras obras.

Certa feita, numa entrevista, lhe perguntaram o que gostaria que escrevessem na sua lápide e ele disse: “Viveu bastante, mas não aprendeu muito”. Eu diria que ele escreveu bastante e nos ensinou muito. Mais de 80 livros compõem o seu legado. Mesmo sendo considerado um autor prolífico, não era repetitivo e não escrevia com pressa. Trabalhava com muito esmero, ao longo de sua vida, varando noites, feriados, finais de semana, para nos deixar esse acervo cultural.

Tive a oportunidade de lhe perguntar como conseguia escrever tanto, diante de sua participação em vários eventos literários e de seu ofício médico. Respondeu-me que não esperava o silêncio, a “hora certa”, escrevia nos hotéis, no avião. “Dá tempo, Leo, é só se disciplinar”.

Chorei com a sua morte, ocorrida em 27 de fevereiro de 2011, aos 73 anos. Não era somente um grande escritor que perdíamos, mas uma pessoa de extrema gentileza. Não tinha a arrogância usual dos acadêmicos. Até confessou que a Academia é uma instituição que retrata o Brasil no que tem de mais e menos grandioso. Por todas as contribuições que deixou, “Eu vos abraço”, os milhões de Scliars em um ser único.

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  1. Beleza de texto, Leo. Puro sabor. Você é um privilegiado por ter conhecido pessoalmente o Scliar. Esses encontros memoráveis são a riqueza da vida. Parabéns por tudo. Francisco Gil Messias.

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    1. Privilégio também é ter você como leitor-amigo-leitor. Obrigado! Abraços!

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