Ideal seria que fosse dado a todos sangrar seu substrato lírico, independente de idade ou de estações da vida. Foi o que senti aos primeiros tons da lira amorosa de José Nunes, deixando-se entrar em recaída numa idade em que já nos cansam outros labores.
“No fim do dia quero olhar teus olhos!
No fim do dia minhas mãos cansadas repousarão no teu corpo (...)”
E vem o canto final, decorridas dezenas de estações:
“Sofia é minha canção
Sofia é o sol do meu entardecer.”
Lirismo não escolhe idade. Não pertence a nenhum tempo nem respeita estilo. Quem nunca tangeu as suas cordas não está longe de provocá-las ou nelas se envolver.
Há uma página de Graciliano Ramos, em seu livro de viagem, na linguagem que é própria do escritor alagoano. Viu sentada num banco de jardim da Geórgia entre um pé de quipá alastrado, cardo rasteiro do nosso Nordeste, uma princesa que o regime de então transformara em enfermeira numa colônia de férias para operários. O fascínio do contraste represou-lhe a expressão, que não era outra a não ser lírica.
Nunes tem a virtude, sem acanhamento, de refazer um mundo que não pertence mais ao homem ou que nunca lhe pertenceu. Ele traz de volta um ser ainda natural, com os pés na relva e que ouve o cantar dos passarinhos. Estrelas, nuvens, tudo a recompor no madurão de setenta anos, idade de acadêmico, os guardados de um outro tempo, tendo Sofia como inspiração.
“Quando o vento tocar o teu rosto / sou eu, na aragem, a te buscar.”
Precisamos evocar outros mundos. Nações irmãs de eslavos, palestinos, judeus, árabes, até onde as curvas do globo nos deixam avistar, estreçalham-se não mais de exército contra exército, mas no alvo debaixo do qual vivem mães, velhos e crianças. E onde não se entredevoram nações cresce como nunca o abismo entre os apaniguados na riqueza e os que não sabem o que vão comer no dia seguinte. Num artigo desta semana, Rui Leitão nos deixa sufocados com a indiferença do homem ou a inconsciência reinante dessa nova barbárie sem caverna que o possa acolher, como a primitiva.
Não admira, pois, que um lavrador da vida simples desborde o que lhe dita o coração. Há poucos dias, recebi de uma amiga, Suely Pimentel Brito Barros Libório, bancária aposentada, sem militância aberta nas letras num seu livro de “antigos guardados”, escrito de si para consigo pelas “veredas do coração”, como confessa.
Ah, Suely! Você fala “no vento, nas folhas secas, verdes, murchas, arrancadas, caídas, que saem pelo mundo voando, planando, arrastadas, seguindo.” Como venho tentando voltar a elas. Lirismo e tragédia moram na mesma rua ou no mesmo verso.
Nem Santa Cecília, a do “Mar Absoluto” pôde fugir do cerco:
“Pus o meu sonho num navio
E o navio em cima do mar.
Depois, abri o mar com as mãos
para o meu sonho naufragar.
Depois, tudo estará perfeito: praia lisa, águas ordenadas
meus olhos secos como pedras
e as minhas duas mãos quebradas.”