Todos concordam com que a poesia de Augusto dos Anjos é universal – e quem duvida de que ela é uma das mais fortes e originais que já se escreveu? No entanto, essa propalada universalidade não tem, ao que eu saiba, se concretizado em versões nas línguas estrangeiras. Por ser o poeta que é, Augusto deveria ser mais traduzido. E o curioso é que ele é pouco traduzido, justamente, por ser o poeta que é. Ou seja, por se constituir num enorme desafio devido à peculiaridade do seu vocabulário e, sobretudo, à vigorosa e ríspida dissonância dos seus fonemas.
Um passo para o reconhecimento do poeta em nível mundial se dá com o lançamento da antologia Monólogo de uma Sombra, que traz composições do Eu, do volume Eu e outras poesias, editado por Órris Soares em 1920, e incorpora alguns dos “poemas esquecidos”. Vê-se que, a fazer uma rigorosa escolha estética, os editores preferiram fornecer uma amostragem ampla da poética de Augusto, nela incluindo até poemas que testemunham a sua fase simbolista (sabe-se que o poeta preservou deles apenas “Vandalismo”, que se encontra no Eu). O resultado é um painel que, a não ser pela ausência de alguns poemas longos fundamentais (explicável, certamente, pelas enormes dificuldades que ofereceriam à tradução), dá bem a medida do valor do paraibano.
Como se terá saído o nosso poeta na língua de Goethe e Nietzsche? Para responder essa pergunta, recorro a palavras de Maurice Van Woensel, cuja sucinta e abalizada apreciação subsidiou o Parecer do conselheiro Odilon Ribeiro Coutinho quando o livro que ora apresento tramitou pelo Conselho Estadual de Cultura. Maurice começa louvando o empenho do editor Carlos Azevedo e das tradutoras, chamando de corajosa a empreitada. E posteriormente, conhecedor que é da língua alemã – e de muitas outras, por sinal –, considera que a tarefa obteve sucesso. Segundo ele, “as tradutoras tiveram o cuidado de se manterem fiéis ao sentido e à filosofia dos versos: não encontramos nenhum caso de infidelidade semiótica”.
O professor remata a sua apreciação afirmando que se realizou um trabalho admirável e que a equipe “germano-brasileira responsável pelo empreendimento só merece louvores”. Dessa equipe fez parte, além do citado Carlos Azevedo e das tradutoras, o professor Tiago de Oliveira Pinto, diretor executivo do Instituto Cultural Brasileiro em Berlim, a quem coube o prefácio da obra.
Como não conheço o alemão, mas conheço bem Maurice, só me resta concordar com as suas palavras e parabenizar a equipe por ter encarado e vencido essa difícil tarefa. E me sinto envaidecido por apresentar um trabalho que não é apenas o reconhecimento a um autor paraibano – é sobretudo uma realização intelectual de alto nível.
O interesse da Universidade Livre de Berlim, onde leciona o professor Carlos Azevedo, e do Instituto Cultural Brasileiro em Berlim pela obra de Augusto dos Anjos não é casual. Por estranho que pareça, existem afinidades entre a poesia do paraibano e a literatura alemã. Gilberto Freyre e Anatol Rosenfeld foram dos primeiros que apontaram semelhanças entre Augusto e os expressionistas alemães, identificando neles o mesmo desespero, a mesma intensidade caótica, o mesmo terror ante o fim iminente do homem e das coisas – tudo isso vazado numa forma áspera e dissonante.
Gilberto Freyre vê no expressionismo de Augusto a aproximação com o pictórico que caracteriza artistas alemães da década de vinte. E considera que através desse expressionismo, moldado por uma estranha mistura de cientificismo e coloquialismo, o poeta criou uma nova expressão para o português literário no Brasil. O uso dos vocábulos científicos, segundo Anatol Rosenfeld, constitui a “costela de prata” no organismo fonossemântico da lírica de Augusto. Com ele o poeta se aproxima dos alemães Trakl, Heym ou Benn, expressionistas do início do século que, por meio de procedimentos semelhantes, procuraram fugir ao convencionalismo e à fluidez do lirismo burguês e tradicional. O paraibano se aproxima desses autores, entre outras razões, por evidenciar o mesmo desconforto de estar no mundo e o cultivo do grotesco e do estranho.
As indicações de Gilberto Freyre e Anatol Rosenfeld revelaram-se preciosas. Confrontando-se a obra de Augusto com a dos expressionistas alemães, percebem-se coincidências intrigantes. É curioso como um provinciano da Paraíba, criado em engenho e vivendo longe do Velho Mundo, sente as mesmas coisas que um punhado de jovens e nostálgicos burgueses alarmados com a perspectiva iminente, e cada vez mais próxima, da I Guerra Mundial. Para além da distância cultural e geográfica, o desencanto é o mesmo e se concretiza em idêntica proposta estética, expressa na busca do feio e do disforme, assim como no desejo de um mundo novo. Esse mundo não surgiria do nada, mas da corrosão putrefeita do mundo velho.
Em seu poema “Grodek”, Trakl afirma que “todos os caminhos desembocam em negra putrefação” e que só uma dor “alimenta a chama ardente do espírito: os netos que ainda não nasceram”. Ou seja, num cenário de caos e desolação, imagem do mundo que se decompõe na guerra, ele reconhece a perspectiva, mesmo dolorosa, de um futuro. Em Augusto existe a mesma tensão entre um mundo arruinado, que se recusa a desaparecer, e o mundo novo que nascerá dos escombros do primeiro – enfim, entre o que já não é e o que ainda não veio.
Essa tensão entre a recusa do velho e o aceno do novo é mediada pela imagem do “verme” enquanto agente de transformação – ou, conforme escreve Augusto, enquanto “fator universal do transformismo”. Em seu livrinho sobre os expressionistas alemães, Cláudia Cavalcanti observa que, nessa vertente estético-literária, “a palavra ‘putrefação’ (...) indica não somente o fim, mas o começo depois dele”. Tal observação também se aplica a Augusto dos Anjos. Nele o verme é um “deus”, pois destrói para permitir o aparecimento de outra coisa. Nele, “os netos” do poema de Trakl, cujo nascimento ameaçado é o que alimenta a chama da esperança, transmutam-se no “grande feto”, no projeto do homem novo que virá substituir a espécie decaída – conforme está no final de “Os doentes”.
O grotesco dos expressionistas, segundo o especialista nessa escola João Barrento, resulta de “uma deformação ou de uma desproporção em relação à realidade considerada normal, da desintegração de um todo organizado...”. Estas palavras vêm a propósito do poema “Weltende” (O fim do mundo), da autoria de Jakob van Hoddis, um dos autores representativos do expressionismo alemão. Numa das quadras de “O fim do mundo”, escreve o poeta” (tradução de João Barrento): “Voa o chapéu ao bicocéfalo burguês./ Os ares enchem-se de gritos e rumores./ Desintegrando-se, caem os telhadores,/ E – segundo as notícias – sobem as marés.// Chegou a tempestade, saltam mares ululantes/ Para terra: esmagar diques é sua intenção./ Em quase toda a parte grassa constipação./ Os comboios precipitam-se das pontes.” (Ibidem).
Ora, a poesia de Augusto é cheia dessas imagens de destruição, em que o elemento físico se decompõe, pela doença, e se anula por uma espécie de subversão das leis da física. A referência à desintegração dos telhados e ao salto dos mares, no trecho acima, lembra a desolação anárquica de “As cismas do Destino”, onde nada fica de pé e, generalizadamente, se percebe a mesma atmosfera de fim do mundo – conforme demonstram estes versos: “O mundo resignava-se invertido/ Nas forças principais do seu trabalho.../ A gravidade era um princípio falho/ A análise espectral tinha mentido!// O Estado, a Associação, os Municípios/ Eram mortos. De todo aquele mundo/ Restava um mecanismo moribundo/ E uma teleologia sem princípios.”.
Em “As cismas do Destino” (assim como no poema do alemão), também se registra a convulsão dos elementos naturais, a agonia urbana de uma metrópole em cuja alma “profundamente lúbrica e revolta/ Mostrando as carnes, uma besta solta/ (Solta) o berro da animalidade” – uma metrópole, enfim, que se esboroa em meio a presságios, rumores e gritos.
Outro ponto comum entre esse poema e o fragmento de van Hoddis está em que, também em Augusto, a natureza adoece. Assim, a imagem da “constipação” que em quase tudo grassa, referida em “O fim do mundo”, corresponde no paraibano às alegorias da tuberculose e do tétano, que acometem não apenas os animais como também a matéria inorgânica. Numa das estrofes de “Gemidos de Arte”, o nosso poeta chega a falar de uma “parede doente”, “trôpega e antiga”, que “Mostra a cara medonha dos buracos”.
Muito mais haveria a dizer sobre os pontos em comum entre a poética de Augusto dos Anjos e a dos expressionistas alemães. É melhor que o assunto fique para uma ocasião posterior, quando será possível comparar os autores com rigor acadêmico e alguma profundidade analítica. Hoje a noite é sobretudo de festa, ou seja, de congraçamento e leveza. Encerro as minhas palavras parabenizando os editores, as tradutoras, o governo do estado, enfim, a todos que concorreram para o aparecimento deste livro. Tenho certeza de que essa amostragem da poesia de Augusto despertará o interesse dos alemães pelos seus outros poemas. Pois muito da lírica do paraibano, em função das aproximações que aqui esbocei, lhes soará familiar.
O texto acima foi extraído da apresentação que fiz, no Hotel Globo, por ocasião do lançamento da antologia “Monólogo de uma Sombra”, publicada pelo Instituto Cultural Brasileiro em Berlim (ICBRA). Com financiamento da Secretaria de Estado da Cultura da Paraíba, a obra foi lançada em edição bilíngue português-alemão. A tradução coube a um grupo chefiado por Helga Reek, que teve a supervisão do professor Carlos Azevedo.