Escolheu por mundo as imediações da cidade mordiscada, em desalento, ornada de incompreensíveis pichações. Desmandos de noites, escritos intraduzíveis lavrando as paredes dos casarões ao abandono. Por ali dominavam as tribos daqueles que se entregavam a vícios e desmantelos, a procurarem fantásticas aventuras. Mas se propunha a uma missão: fazer-se com eles, numa tentativa em recuperar vidas em desalinho. Torturas de quem se achava escolhido à redenção de jovens, adultos, enfim, gente tragada por nuvens espessas.
Alugou uma casa, ele mesmo preparava as refeições, disposto em fé e destemor. Iria, pensava, interpretar o mistério das inscrições nas almas das pessoas decepadas que optaram por aquele viver. A maioria jovens, uma lástima. Motocas envenenadas estacionavam próximas a um galpão. Formava-se a conspiração. Os moradores dos becos e sobrados se achegavam aos motoqueiros. Cantavam músicas, tocavam guitarras. Refugiavam para a reunião acontecida semanalmente.
Ele observava o alvoroço de uma juventude anestesiada por práticas estranhas, falando uma linguagem adversa. Escutava a algazarra, as danças, o espírito de resistência a regras pré-concebidas, a aversão a normas vigentes na aldeia de adultos maduros, velhos. Como tomaria alento para familiarizar-se com eles ainda verdes? Olhava-se a si mesmo e se aceitava já avançado no tempo.
Uma noite, aproximou-se. Foi chamado de coroa. Começou a compor a roda. Uns bebiam, outros tragavam. Tomou com eles uma dose de cerveja. Ganhou-lhes a simpatia. Foi notando que era uma fuga deles aos ditames férreos de uma educação que lhes exigia cumprimento de ordens, obediência subserviente, e se refugiavam naquele espaço privado, sem intromissão de ditadores de comportamentos arcaicos. Todos tinham as pichações nos corações inquietos.
Perguntou se eles acreditavam em Deus. Silenciaram. Uns esboçaram um riso sarcástico. O homem abriu uma carteira e se identificou como padre. Entreolharam-se surpresos. Abriu o coração e o sorriso para eles. Muitos vieram abraçar o sacerdote. Muitos deixaram de frequentar aquele mundo. Para sempre. Franco milagre.