O CHAMADO CICLO REGIONALISTA DO NORDESTE
Meu amigo Antônio Torres, sertanejo como eu e baiano como Jorge Amado, me contou, certa vez, que o autor de Gabriela, Cravo e Canela considerava José Américo o pai dos grandes romancistas de uma geração magnífica como a dele próprio. Com todo o devido respeito ao autor de A Morte e a Morte de Quincas Berro d'Água, sua mais brilhante novela, e ao de Querida Cidade, obra-prima de Seu Tonho do Junco, o grapiúna nosso rei é exatamente o melhor exemplo de que não existe uma literatura regional monofásica, como se pretende por aí. Itabuna e Ilhéus
E, aí, lá vem o intruso velho de guerra para colocar José Américo de volta nessa prosa. A Bagaceira não se tornou uma saga da seca porque a mocinha é retirante, nem um romance regional por acontecer no brejo úmido da monocultura açucareira, a léguas do sertão paraibano. É, sim. Como no caso específico da obra-prima de Graça, que Nelson Pereira dos Santos adaptou genialmente para o Cinema Novo, sua linhagem é bíblica e, como no caso de Gabriela, especificamente do êxodo, ora bolas! E daí?, perguntará o leitor enfadado. Sinceramente, não sei.
Mas me incomoda muito o fato de minha amadíssima amiga e genial autora da coluna Última Página da revista O Cruzeiro, que este menino míope lia desbragadamente ao sol escaldante do sertão do Rio do Peixe, ser incluída em literatura regional. Recentemente, ainda relendo A Paraíba e Seus Problemas, vi reportagem na TV sobre seca na Palestina. O Quinze é literatura de que região específica? Sobral ou Índia? Cochinchina ou Califórnia? Ora, ora, ora...
Outra lembrança me veio à mente em relação a outro conterrâneo da Paraíba, meu xará José Lins do Rego, genro do senador Massa. Fala-se no moço de Pilar e logo se pensa que o assunto é Menino de Engenho, adaptado para o cinema por Walter Lima Júnior também de forma genial. No entanto, peço vênia para declarar solenemente que o grande livro dele é Fogo Morto. O seleiro José Amaro, colega de ofício de seu Tonheiro, pai de Luiza Erundina, uiraunense e ex-prefeita de São Paulo, a três mil quilômetros uma da outra, é tragédia grega até os ossos. Agora me ocorre a lembrança de Raduan Nassar, que foi meu chefe no Jornal de Bairro. Lavoura Arcaica é regionalista de onde? Pindorama, onde ele nasceu, o faz candidato a líder do regionalismo caipira paulista ou do memorialismo tupi-guarani? Ora, essa não! Nassar, gênio da literatura dedicado à agricultura e à política, é da região de Ismail Kadaré, autor de Abril Despedaçado, é do ciclo literário dele, a Albânia, na Europa Oriental. Tanto é que o filme foi exibido no Brasil na luxuosa companhia do documentário Bolandeira, de Vladimir Carvalho, paraibano de Itabaiana, terra do maestro Severino, vulgo Sivuca. E sabe de quem mais? Do romeno Panaït Istrati, autor de Kira Kiralina, escrito em francês e que encantou Romain Rolland.
O PIONEIRO DE UM ROMANCE SÓ?
Uma das consequências da fortuna crítica do romance saudado no Rio por Alceu Amoroso Lima na sua estreia, há 94 anos, é a dúvida sobre sua condição de primícia. O Cabeleira, do cearense Franklin Távora, abordou cangaço e regionalismo avant la lettre em 1876, 52 anos antes. Li-o no Instituto Redentorista Santos Anjos, em Campina Grande, aí pelos anos 1960, e isso era debatido.
Pouco antes desse texto, tomei conhecimento de outra dúvida a respeito da condição de primeiro romance regional ainda no século 19, em 1882, quando do lançamento de Além do Ipiranga – a extraordinária vida de Pedro Américo e suas incríveis facetas, pelo presidente da Academia de Letras de Campina Grande – na qual ocupo a cadeira número 23, cujo patrono é Assis Chateaubriand e o fundador, Epitácio Soares, chegou a ser meu colega na redação do Diário da Borborema, da rede associada, Thélio Queiroz Farias, uma semana antes da reabertura do Museu do Ipiranga para a comemoração do bicentenário da Independência do Brasil por Dom Pedro I. Na apresentação do livro pelo autor, foram feitas duas revelações que podem nos remeter ao tema deste texto. A primeira delas é que os pais do autor do livro que aqui comentamos, Josepha Leopoldina e Ignácio Augusto de Almeida, escolheram o nome do filho em homenagem ao pintor de Independência ou Morte, Pedro Américo de Figueiredo e Melo, que, por uma dessas coincidências notáveis da vida de grandes homens, veio à luz em 1843, numa rua então conhecida como do Sertão na mesma cidade de Areia onde, em 1887, portanto, 44 anos depois, só que no engenho Olho d’Água, de propriedade dos pais, nasceria nosso tema.
Em 1882, portanto, cinco anos antes do nascimento de José, fora publicado em Florença, na Toscana, Itália, o romance do Pedro intitulado O Holocausto, tendo o protagonista o nome de Agavino, uma referência ao agave, uma das riquezas vegetais do contraforte do Planalto da Borborema. O pernambucano Joaquim Nabuco, fundador da Academia Brasileira de Letras junto com Machado de Assis, não deixou passar em branco o lançamento no outro lado do Atlântico e do Mediterrâneo. Escreveu, à época: “Louvo o notável livro sobre alguns de seus aspectos, dando-lhe o valor de um documento histórico a favor da abolição da escravatura e de um incentivo para o progresso de nossa pátria”. No entanto, nem o aval do grande brasileiro, autor de Um Estadista do Império, em três tomos, e Minha Formação, alavancou a fortuna crítica do livro, que logo caiu no esquecimento. Mas, ainda assim, depois seria incluído no rol de candidatos a concorrentes de A Bagaceira na condição de primeira obra do chamado regionalismo nordestino. Antes mesmo de seu título bombástico tornar-se o assunto central do século 20, denominando a crueldade nazista na perseguição aos judeus.
OUTROS ROMANCES DE JOSÉ AMÉRICO
Outra consequência funesta para a justa inclusão de A Bagaceira entre os grandes romances brasileiros de todos os tempos, tendo havido ou não o tal ciclo regionalista, é que essa efeméride isolou seu autor praticamente na condição de escritor de um romance só, o que é uma tremenda injustiça.
Há na ficção americista outros grandes exemplos de marcos seminais. Sem medo de errar, cito, por exemplo, Boqueirão, lançado sem estardalhaço nem segunda edição em 1935, mas com a ressurreição patrocinada pelo professor de Literatura da Universidade Federal da Paraíba Juarez da Gama Batista, que o resgatou antes que sua fama ruísse sob o silêncio da indiferença no prefácio da 2ª edição, que se tornou antológico. Nele o mestre falou em Força da Profecia para escrever:
Diante desse romance curto, forte e inteiriço que o Sr. José Américo de Almeida escreveu há mais de 30 anos e logo caiu no esquecimento, o leitor que for desencavá-lo no seu ostracismo de primeira e única edição deixa-se estremecer por um espanto: eis um grande livro perdido de si, estranho como uma coisa desencontrada de seu destino; eis um livro de hoje, um drama de nosso tempo.
Isso ele registrou no livro Sinfonia Pastoral do Nordeste, em plenos rebeldes anos 60. No mesmo ano de 1935, José Américo publicou Coiteiros, sua contribuição à literatura do cangaço, iniciada por Franklin Távora e também depois praticada por José Lins do Rego em Pedra Bonita (1938) e Cangaceiros (1953) com qualidade estilística suficiente para escaparem do estigma regionalista.
JOSÉ AMÉRICO, PIONEIRO DO MODERNISMO
Meu nariz torcido para essa tentativa de inventar um romance regionalista nordestino pelos paulistas para evitar a inclusão de escritores do tamanho de José Américo, José Lins, Rachel de Queiroz, Jorge Amado e Graciliano Ramos, todos estrelas de primeira grandeza da literatura brasileira, num timaço estrelado por Mário e Oswald de Andrade, e não apenas nordestina, acabou de receber nova e surpreendente contribuição.
No dia em que terminei esta peroração, meu amigo Paulo Mello, assistente de direção de Walter Lima Júnior em Menino de Engenho e remanescente do cineclubismo paraibano, no qual se inscreve este escriba sertanejo metido a sebo, mandou-me trecho valioso de autoria de seu colega na assessoria do sábio Lynaldo Cavalcanti, educador de primeira água e ex-reitor da Universidade Federal da Paraíba, que o areiense fundou.
Outro assessor de Lynaldo, José Pereira Ramos, escreveu a respeito do humor na obra de José Américo, ao qual o marido de Mariza Mello, neta do maior cordelista paraibano, Leandro Gomes de Barros, favoreceu esta linha de raciocínio, me presenteando com um mimo inestimável.
Há uma espécie de humor na primeira novela de José Américo que não se reproduz no seu romance (A Bagaceira). É um humor circunstancial, humor de crise, revolucionário, reformista. É o humor que agitou o Brasil literário de 1922. Humor de protesto, de sarcasmo, de demolição, de luta aberta contra o passadismo literário, contra românticos e parnasianos. Humor dos iconoclastas que organizaram, entre polêmicas, panfletos e manifestos, a Semana de Arte Moderna de São Paulo. E não é simples coincidência: os mesmos “bodes expiatórios” do modernismo delirante aparecem sentados em cadeira de réu no texto de Reflexões de uma Cabra.
Perfilo-me ao lado de José Pereira Ramos, quando também escreveu, logo no parágrafo seguinte:
Há um anacronismo que precisa ser urgentemente corrigido na história literária do Brasil. José Américo não é apenas o precursor do romance nordestino: é também pioneiro do próprio modernismo literário e artístico brasileiro.
Quando Mário de Andrade lançava, em São Paulo, seu poema-protesto, de escárnio aos medalhões, José Américo, na Paraíba, em meio aos seus libelos acusatórios de promotor de justiça, elaborava sua novela-protesto, que ele próprio definiu como caricatura dos processos de ficção então vigentes no Brasil.
GILBERTO FREYRE NA CIRANDA DE LIA
Casa-Grande & Senzala, de Gilberto Freyre, também tem todos os méritos para entrar nessa discussão sobre regionalismo versus federalismo. Pois, publicado em 1933, apresenta a importância da casa-grande na formação sociocultural brasileira, assim como a da senzala na complementação da primeira. E, como este livre atirador não é de resumir a munição da garrucha a um tirambaço, gostaria de propor ao leitor amigo (só um amigo poderia ter tanto fôlego para não parar de ler esta diatribe) que porei o ponto final depois de dizer que, se houvesse um pódio das ciências sociais brasileiras para o século dito das luzes, embora tenha sido o da mortífera fissão atômica, ele teria Euclides de Cantagalo, José Américo de Areia e Gilberto Freyre de Apipucos. O autor do monumental e também desprezado pelos narizes empinados da Pauliceia Desvairada (com seu manifesto Ode ao Burguês, de Mário, “Eu insulto o burguês!/ O burguês-níquel,/ o burguês-burguês!”, também de 1922) Casa-Grande & Senzala, editado em 1933, portanto, dez anos depois de A Paraíba e Seus Problemas, tem todos os méritos para frequentar este patamar. Amém!