Foi o próprio João Batista que falou: “Diz-se que poesia não se traduz. Mas se tenta.” É verdade. Pois se há realmente algo difícil de traduzir para outro idioma é poesia. Não raro custa interpretá-la até na mesma língua, como sabemos. Além do exímio domínio das línguas envolvidas, requer-se do tradutor muita sensibilidade poética, sem falar na capacidade criativa, requisito essencial do ofício. Claro que a prosa também exige muito, mas é evidente que a poesia é bastante mais complexa. O trabalho vai além da simples versão das palavras e frases, pois há que se alçar voo até as alturas da arte poética, na qual significantes e significados nem sempre – ou quase nunca – coincidem com o previsto nos dicionários. E nem sempre dispõe o exegeta de asas grandes e fortes o suficiente para o arriscado desafio.
O fato é que João Batista de Brito aventurou-se a traduzir para o inglês alguns poemas selecionados de Sérgio de Castro Pinto. E o resultado é a pequena joia belamente intitulada Traduzir-me (Editora Ideia, João Pessoa, 2024), dada a público recentemente. Vê-se que já o título solicita uma tradução. Pois quem está a traduzir-se, perguntará o leitor, o poeta ou o tradutor? Ou ambos? Com a palavra (em vernáculo, please), os autores e os doutos.
Fui pesquisar e constatei que as palavras traduzir e trair possuem, em latim, o mesmo prefixo “trans”, que significa além, adiante. Traduzir vem de “trans” mais “ducere” (guiar, conduzir) e trair de “trans” mais “dare” (passar algo adiante, com prejuízo de alguém). Coisas diferentes, como se vê. Não que não possam se misturar, já que, ao traduzir, pode-se trair – e como! Todavia, certamente não é este o caso do livro ora tratado. João Batista jamais trairia Sérgio – e vice-versa. São tão amigos e afinados que o primeiro tomou a obra do segundo como tema de sua tese de doutorado.
Segundo João, o presente livro nasceu de uma brincadeira. Ele traduziu para o inglês, sem nenhuma pretensão, um certo poema de Sérgio e o mostrou ao poeta. Este, com seu fino faro editorial, logo enxergou ali muitas possibilidades. E propôs ao anglófilo estender a tradução para outros poemas, repto logo aceito, com satisfação. E depois veio a feliz ideia de convidar Flávio Tavares para, com a sua arte personalíssima, ilustrar a obra conjunta. Estava completo o trabalho primoroso, agora posto à disposição dos leitores em caprichada edição que teve à frente Magno Nicolau, da Ideia, a dispensar apresentação.
Traduzir e trair. Traduzir é trair? Às vezes, sim. Mas não de má-fé, claro, mas por necessidade, segundo afirmam alguns tradutores. Trair na medida em que também criam – ou recriam - quando traduzem, sendo coautores da obra traduzida. Daí ser necessariamente o bom tradutor um escritor e não apenas alguém que verte um texto para outro idioma, trabalho que hoje pode ser feito por computador ou por equipamentos de inteligência artificial. Tradução não é simples versão, nunca foi. No caso de João Batista de Brito, deve-se esclarecer sua condição de professor de literatura inglesa e sua familiaridade com a poesia de Shakespeare, por exemplo, o que o habilita ainda mais à tradução poética para o inglês, não fosse ele, para além disso, exímio cronista e crítico de cinema.
Não sei se a poesia de Sérgio facilita ou não sua tradução. Não sei também se é correto afirmar que sua poesia parece ser mais objetiva que subjetiva, na medida em que, sabe-se, resulta mais da transpiração (a “luta com as palavras”) que da inspiração (a visita súbita e incerta das musas), para usar um clichê caro aos críticos literários. O certo é que é uma poesia contida, sem derramamentos nem desperdícios, deliberadamente restrita ao essencial, na qual busca-se dizer mais com menos. É uma poesia que economiza vocábulos não por avareza, mas para se expressar melhor, segundo os desígnios do poeta/artesão, um fino joalheiro, digamos, miniaturista. Nele, talvez se possa dizer, que prevalece o racional sobre o emocional, sem que isso jamais signifique ausência de emoção em seus poemas. Terá isso ajudado João?
Os treze poemas escolhidos para a tradução não poderiam ser mais belos, independentemente de quaisquer outras considerações técnicas. São belos porque são belos, assim os vejo – e sinto. Um pequeno exemplo da qualidade poética de Sérgio de Castro Pinto, nosso grande e discreto bardo aldeão. Aldeão, sim, por gosto e por opção, tão enraizado na terra que é – e faz questão de ser. Mas que há muito já extrapolou os muros baixos da aldeia, para colher, com modéstia e merecimento, o unânime reconhecimento nacional de sua lírica de escol. Sem condições de escolher o melhor deles, fico com as treze pérolas e com elas faço um colar tropical (não havaiano), bem brasileiro, para inglês nenhum botar defeito. Incluindo, claro, o décimo-quarto poema (cine brasil: matinée das moças) que vem na contracapa e que jamais poderia ser omitido, dados a sua arte e o seu sabor.
Honesto, o tradutor, em sua apresentação, admite que, na tradução, pode ter havido perdas. Será mesmo? E se as houve, que importa, se certamente houve ganhos em compensação? O próprio livro já o é, não há dúvida. Essa literária e inevitável contabilidade faz parte do jogo quando se verte para outro idioma. E talvez aí esteja um dos encantos das traduções. Literatura nunca foi – nem pretende ser – exata ciência, ainda bem.
O fato é que trabalhos dessa natureza têm sido raros entre nós. Na verdade, não me lembro de outro semelhante ou parecido aqui entre nós. É esta mais uma razão que o valoriza. Por vários aspectos, o pequeno volume se agiganta e se transforma, desde já, num marco e numa especial conquista intelectual da cultura paraibana.
Ao criar seus poemas, Sérgio se traduz. João Batista traduz Sérgio. E nós, leitores, ao lê-los, traduzimo-nos. Ou pelo menos tentamos.