De tudo faz-se a crônica, já dizia Drummond. E é verdade. E a beleza da crônica está nisso também. Nesse saudável descompromisso com planos, projetos e estratégias de todos os tipos. A crônica normalmente é espontânea. Ela surge na cabeça do cronista de repente, por uma razão qualquer, um acontecimento, uma leitura, uma experiência, alguma coisa que ele entenda valer a pena registrar, dividindo dadivosamente com o leitor aquilo que presenciou, viveu e sentiu. A crônica, como a literatura e a arte em geral, é sempre dadivosa. E catártica. Não pode deixar de ser assim, se se pretende autêntica e verdadeira. Daí seu encanto, seu sutil e não raro precário encanto, aquele encanto de tudo que é precário – como a vida mesma, que pode acabar num instante imprevisto.
E tem os mistérios (ou as coincidências, como querem alguns). Ah, os mistérios. Prova de que existe algo mais além daquilo que se vê e se toca, como diz a canção. Os mistérios que nos tornam humildes e nos põem de joelhos, diante do que não conseguimos compreender e explicar, nós, pobres coitados racionais tão afeitos à exatidão e aos números (dois mais dois são quatro?), como se tudo estivesse ao alcance da razão, de nossa pequena e limitada razão, um nada face à imensidão do céu estrelado, das galáxias, do universo aparentemente sem fim.
Pois eu vivi algo assim recentemente e achei que talvez desse a crônica que agora escrevo tateante, como um cego na rua. Uma experiência de nada (ou não), mas que me surpreendeu e me deixou a pensar nos enigmas da existência. Um acontecimento mínimo (ou não), talvez fadado ao olvido, como tantos outros do cotidiano, mas que resgatei para dar-lhe um outro estatuto, quem sabe o da enganosa perenidade da palavra escrita e do texto publicado.
Estava eu em São Paulo, a megalópole, para tratar de assunto mais ou menos preocupante, pois que tinha a ver com a saúde de pessoa próxima e querida. Era um sábado de manhã chuvosa e fresquinha (os paulistanos chamam assim a frieza que para nós, nordestinos, já é muita), quando, num momento de descanso e relaxamento, resolvi dar um giro na tradicional feirinha de antiguidades da Praça Benedito Calixto, já minha conhecida de outros carnavais. Fui mais para olhar que para comprar. Fui talvez à procura do inesperado, ou seja, das coisas que estão à nossa espera sem que saibamos, um dos encantos dos antiquários em geral, como bem sabem os apreciadores daquilo que os ignorantes, jovens ou não, costumam chamar levianamente de “velharias”. Quando de repente, e distraído, deparo-me com ninguém mais ninguém menos que Nevita Franca, a pessoense legítima, intelectual e escritora de minha admiração, exitosa autora de Pensamentos Vadios (Editora Ideia, João Pessoa, 2022), um livro para se ler e reler. Jamais pensei que veria naquele lugar e àquela hora um conterrâneo que fosse, menos ainda alguém que conhecesse. E aí a surpresa foi mútua, com o natural embevecimento dos aldeãos que, viajantes, se encontram longe de casa …
Diferentemente de mim, Nevita estava a passeio, com sua filha. Suas obrigações eram de outra ordem: com os teatros, os museus, os restaurantes, os shoppings e tudo que a atual capital cultural do Brasil tem a oferecer aos que sabem ( e podem) apreciar. Como não poderia deixar de ser, ela me fez ótimas indicações, as quais, infelizmente, não pude seguir devido as minhas circunstâncias. Mas tudo isso era detalhe, face à grande surpresa que foi o encontro em si. E o interessante é que aqui, na aldeia, e para meu prejuízo, raramente encontro Nevita, apenas uma vez ou outra, geralmente num lançamento de livro ou evento parecido. E aí a encontro súbito numa cidade de quase 20 milhões de habitantes …
Nélson Rodrigues gostava de dizer que “uma das piores formas de solidão é a companhia de um paulista”. Claro que essa frase tinha muito do humor rodrigueano e de carioca provocação aos habitantes da “paulicéa”. Eu, sinceramente, não posso assinar em baixo, apesar de entender o “espírito” que a explica. Os paulistanos com quem cruzei, antes e agora, foram sempre simpáticos e acolhedores, de modo que não me senti solitário ao seu lado. Talvez o dramaturgo estivesse se referindo apenas a pessoas que só sabem falar em trabalho e dinheiro (temas muito de São Paulo, reconheça-se), realmente uma gente muito desagradável, seja onde for.
Mas voltando ao tema, o fato é que aquele inusitado encontro com Nevita alegrou minha nublada manhã paulistana. Trouxe-me a luz e o calor pessoenses, dando-me ânimo para enfrentar os desafios daquele momento. Mistério ou coincidência? Sou daqueles que creem que as coincidências são mistérios.
Em tempo: graças aos céus (e aos médicos), deu tudo certo nos procedimentos a que se submeteu a minha querida. O que me faz concluir que, além de simpática, Nevita é pé-quente.