Até o Canto XI, o inferno descrito por Dante é de estrutura simples, se comparado ao restante da narrativa, embora as condenações e pun...

Dante, de Homero a Platão

dante divina comedia gustave dore
Até o Canto XI, o inferno descrito por Dante é de estrutura simples, se comparado ao restante da narrativa, embora as condenações e punições vão se agravando, do início até ali, testemunhadas pelos dois poetas-personagens, no seu percurso por seis círculos do Inferno. É no Canto XI, a caminho do Sétimo Círculo, que Virgílio explica a Dante, a complexa geografia do Inferno, a partir da qual os círculos restantes serão mais estreitos, tendo em vista a estrutura cônica do Inferno, mais apinhados de condenados e com condenações mais pesadas. O Sétimo Círculo, por exemplo, é dividido em fossas
Dante e Virgílio atravessam a floresta dos suicidas ▪ Inferno, Canto XIII
específicas e com vigilantes específicos a cada grupo de condenados: Os violentos têm o Minotauro como guardião (Canto XII); para os suicidas e perdulários, são as Harpias as guardiãs (Canto XIII).

Não só a geografia, mas também a hidrografia do Inferno é explicada pelo mantuano ao florentino, com a existência dos rios Aqueronte, Estige, Flegetonte, Cocito e Lete (Canto XIV). A condenação dos sodomitas ocupa três Cantos (XV, XVI e XVII), residindo na terceira fossa do Sétimo Círculo. O Canto XVII funciona como uma transição entre um círculo e outro, quando Virgílio e Dante são conduzidos por Gerião, a imagem da fraude, até a fronteira do Oitavo Círculo.

Vê-se, então, que na medida em que se aumenta a complexidade do Inferno, também se aumenta a complexidade da estrutura do poema. Dante levou X Cantos para narrar a sua chegada ao Inferno e a passagem por seis círculos. Só ao Sétimo Círculo, incluindo a transição do Canto XI, o poeta dedicou sete Cantos. Mas não fica por aí. A estrutura se torna mais intrincada, com a chegada ao Oitavo Círculo, em cujo cinturão Virgílio e Dante são deixados por Gerião, no Canto XVII. A este Círculo, Dante dedicará 14 Cantos (Canto XVIII-XXXI), tal a sua complexidade.
Concubinas e bajuladores agonizam no Oitavo Círculo do Inferno ▪ Canto XVIII
E ao último, o Nono Círculo, Dante dedicará três Cantos (XXXII-XXXIV), para dizer quem são e o que acontece aos condenados das 4 zonas, em que ele se divide, todos imersos no enregelante Cocito: Caína (Caina), Antenora (Antenora), Ptolomeia (Tolomea) e Judeca (Giudecca).

Todo o Oitavo Círculo é dividido em 10 bolsas más, daí o seu nome Malebolge. O início da travessia de Virgílio e Dante pelo Malebolge se dá a partir do Canto XVIII. O Canto XIX, na terceira bolsa, a dos simoníacos, é de grande importância, para acentuar a personalidade corrupta do papa Bonifácio VIII. Ali se encontra o papa Nicolau III, que se encontra à espera de outros dois, Bonifácio VIII e Clemente V. O poeta já havia colocado no Inferno o papa Anastácio II (Canto IX, 8), acusado de heresia, e também Celestino V (III, 59; XXVIII, 105), pela renúncia ao papado, o que levou Bonifácio VIII ao poder. Este papa, responsável direto pelo exílio de Dante é o mais visado, encontrando-se na terceira fossa do Sétimo Círculo (XV, 112), onde se punem os sodomitas. Ele é ainda citado pelo poeta Guido da Montefeltro (XXVII, 70 e 85), na terceira bolsa do Oitavo Círculo, como sendo “o príncipe dos novos Fariseus”, contribuindo, assim, para o longo currículo do pontífice: sodomia, simonia e farisaísmo.

dante divina comedia gustave dore
Canto XIX: Dante repreende a alma do papa Nicolau III ▪ Canto XIX
O líder do bando dos Malebolge, Malacoda, oferece a Virgílio e Dante a escolta de dez demônios subalternos, para que eles possam fazer a travessia, em direção ao Nono Círculo, em segurança (Canto XXI), tendo em vista a astúcia e a agressividade dos condenados que ali se encontram. Os dois então se fazem acompanhar da “feroz companhia” (fiera compagnia, XXII, 14): Alichino (Alequim), Calcabrina (Pisanévoa), Cagnazzo (Cãozaço), Barbariccia (Barbacrespa), Libicoco (Lambecoco), Draghignazzo (Dragonaço), Cirïato (Chafurdado), Graffiacane (Cãorrasgante), Farfarello (Capetinha) e Rubicante (Raivozaço).

Na construção de sua obra, Dante tece a primeira parte — Inferno —, a partir de uma tópica comum ao mundo clássico, a catábasis (κατάβασις), que consiste na descida, em vida, ao Hades, mundo inferior que recebe o nome de seu deus,
A tumba ardente do papa Anastácio II ▪ Canto XI
e que os latinos transformaram em inferno ou infernos, diante da multiplicidade de espaços que ali existem.

Muitos foram os heróis míticos que realizaram a catábasis, antes de Homero e a partir dele, como Orfeu, Teseu, Pirítoo, Hércules, Odisseu, Eneias. Antes de Homero, Orfeu desce aos infernos para recuperar a sua amada Eurídice, o que nos é narrado, posteriormente, por Virgílio nas Geórgicas, Livro IV. Teseu e Pirítoo, por pura ousadia heroica, tentam raptar Perséfone, mulher e sobrinha de Hades. Teseu consegue escapar, mas Pirítoo permanece preso no submundo (Apolodoro, Biblioteca, Livro II). Hércules faz a sua descida, para realizar um dos seus famosos doze trabalhos, aprisionar o guardião do Inferno, Cérbero, o cão trifauce (Apolodoro, Biblioteca, Livro II).

Com Homero, vemos a descida de Odisseu, que fica no limiar do Hades, chamando as almas, para poder falar com Tirésias e saber como deve proceder na sua viagem de volta a Ítaca (Odisseia, Canto XI). No caso de Odisseu, a catábasis pode ser chamada também de nékuia (νέκυια), que tem a função de uma evocação dos mortos, precedida de um sacrifício. Virgílio nos apresenta Eneias fazendo a sua catábasis, com um objetivo semelhante ao de Odisseu. No entanto, não é com um adivinho que Eneias vai se aconselhar, senão com o seu próprio pai, Anquises, que lhe mostrará a glória romana, a ser plantada por ele no Lácio (Eneida, Livro VI).

As almas dos hipócritas dirigem-se a Dante ▪ Canto XXIII
Todos estes heróis, à exceção de Pirítoo, se encontram relacionados no Inferno de Dante, alguns sofrendo punições, outros apenas referidos. Vejamos o tratamento que Dante dá a cada um deles na sua caminhada pelo reino de Plutão.


Orfeu

O poeta trácio é citado apenas uma vez (Canto IV, verso 140). Orfeu se encontra no Limbo, o Primeiro Círculo do Inferno, onde estão os pagãos e as crianças que morreram sem batismo. O poeta é colocado ali, apesar de poeta mítico, ao lado de outros personagens míticos e históricos, como Heitor, Eneias, Camila, Electra, Pentesileia, Lavínia, Sócrates, Platão, Aristóteles, Galeno, Hipócrates, Avicena, Averróis, Lucrécia, Homero, Horácio, Ovídio, Lucano, Sêneca...

dante divina comedia gustave dore
No Limbo, o encontro de Dante e Virgílio com as almas dos poetas ▪ Canto IV
Os que se encontram no Limbo têm a esperança do resgate de suas almas, o que só foi possível, depois da vinda de Cristo ao mundo e da sua descida aos Infernos. É o caso do poeta Virgílio, que se encontra “entre os suspensos” (Io era tra color che son sospesi, II, 52), a quem Beatriz promete louvar, quando estiver diante do Senhor, pela sua ajuda a Dante (II, 73-4).


Eneias

O rei troiano encontra-se no Limbo (Canto IV, 122), por sua natureza de homem e herói pio, conforme celebra Virgílio na Eneida, como um dos seus epítetos mais importantes. Ao herói, vincula-se Dido, a rainha fenícia de Cartago, que se encontra no Segundo Círculo (Canto V, 61 e 85), para onde foram enviados os luxuriosos, cujo símbolo maior da contemporaneidade de Dante são o casal de cunhados Francesca de Rimini e Paolo Malatesta.
Dante conversa com a alma de Francesca di Rimini ▪ Canto V
Ao lado de Cleópatra e de Helena, Francesca di Rimini se lamenta do “desejo que a levou ao doloroso passo” (versos 112-117), junto com o cunhado Paolo Malatesta, o seu “tão caro amante” (contanto amante, 134). O Segundo Círculo (Canto VI, 4-24) tem como guardião o rei cretense Minos que, desde a Odisseia (Canto XI), aparece como um dos juízes do inferno, função que também exerce no Inferno de Dante.

Dido aparece nesse espaço, onde se pune o “pecador carnal” (peccator carnali, verso 38) com ventos contrários e tormentas infernais (versos 31-32), por causa da quebra feita a Siqueu, o marido assassinado pelo irmão dela, de guardar a castidade. Apaixonando-se por Eneias, com uma paixão que lhe queima a medula, a rainha cartaginesa, entrega-se ao herói. Após um ano de convivência, Eneias é instado pelos deuses a dar continuidade a seu destino. Ao ver-se abandonada, Dido se suicida.


Teseu

O herói ateniense é citado duas vezes por Dante. No Canto IX (verso 54), Teseu é citado, por ocasião no Quinto Círculo, onde se encontram os iracundos e acidiosos.
O Minotauro no penhasco ▪ Canto XII
Dante faz referência à sua descida aos Infernos, para raptar Prosérpina, tendo em vista que as Erínias confundem Dante, que ali se encontra vivo, com Teseu, conclamando a união de Medusa, de modo a vingar “de Teseu o assalto”. No Canto XII (verso 17), Dante e Virgílio se encontram de passagem pelo Sétimo Círculo, onde estão os violentos, e o Minotauro, o guardião do recinto, irado, à visão de Dante, morde-se, por pensar que o poeta florentino é Teseu, visto que ambos descem vivos aos Infernos. Não há condenação a Teseu, no entanto. Ao herói, se liga uma grande quantidade de outros mitos, referidos ou punidos no Inferno de Dante: Ariadne, Dédalo, Ícaro, Minos, Minotauro, Pasífae, Baco...


Ulisses (Odisseu)

Ulisses se encontra na 8ª bolsa do Malebolge (Canto XXVI, 56), onde foram jogados os maus conselheiros e os conselheiros fraudulentos, no Oitavo Círculo, o mais complexo de todos do Inferno. Ulisses ali está juntamente com o inseparável companheiro de tropa (ἑταῖρος), Diomedes. Pesa sobre o herói homérico a acusação de usar a astúcia para fraudar, como o roubo do Paládio e o Cavalo de Troia. Esqueceu-se Dante, no entanto (não estou aqui para emendar poetas... Obrigado, Machado!), de citar a morte de Dolon, do rei Rhesos e seus cavaleiros, no Canto X da Ilíada, conhecido como a Dolonia; mortes, com o uso de promessas fraudulentas, para ganhar terreno e vantagem sobre os troianos, que, sob o comando de Heitor, assediam os gregos, a ponto de levar Agamêmnon ao desespero e às lágrimas (Ilíada, Cantos IX e X). É óbvio que Dante faz as escolhas que interessam à tessitura do seu poema, seguindo a lição aristotélica, na Poética, que afirma ser Homero grande poeta por não narrar tudo.

Dante e Virgílio observam os espíritos flamejantes de Ulisses (Odisseu) e Diomedes ▪ Canto XXVI

Hércules

Hércules é citado três vezes, no Inferno. No Canto XXV (verso 32), pelo encontro com Caco a quem derrota, sendo alçado à condição de divindade, em Roma, com direito à Ara Maxima (altar ao herói divino, que pode ser visitado, no subterrâneo da Basílica de Santa Maria in Cosmedin, a mesma da Bocca della Verità, em Roma); no Canto XXVI (verso 108), quando Ulisses, ao escapar de Circe, se refere ao Estreito de Gibraltar ou Colunas de Hércules, cuja inscrição Nec Plus Ultra, ali colocada pelo grande herói, indicava nada haver além daquele ponto, e no Canto XXXI (verso 132), numa referência a Anteu, vencido por Hércules. Não há condenação para Hércules, até porque o herói, estando junto a seu pai, Zeus, encontra-se no Hades, segundo Homero (Odisseia, Canto XI), apenas como uma imagem (εῖδωλον), não como sombra (σκιά), conforme acontece com a maioria dos que morrem.

Dante e Virgílio desembarcam na cidadela de Dite ▪ Canto VIII
Rica em referências e figuras míticas, a Divina comédia, limitando-me, por enquanto, ao Inferno, é uma narrativa que se tece a partir das famosas descidas de heróis vivos ao Hades – Orfeu, Teseu, Ulisses, Hércules e Eneias. Por óbvio, Dante não esquece Jesus, que desce em espírito aos infernos, com o intuito de revelar a possibilidade de resgate das almas condenadas ao Limbo, o que jamais havia acontecido antes. Nesse aspecto, diferentemente dos heróis míticos, a descida de Jesus aos infernos não se faz por burla ou fraude, como Teseu, ou em busca de aconselhamento, como Ulisses e Eneias, mas para salvar almas, como Orfeu. Eis a esperança que o poema traz a Virgílio, assegurada por Beatriz e pela Virgem Maria.

Beatriz e Virgílio ▪ Canto II
Ainda no Inferno, o poema de Dante utiliza-se dos mitos como uma forma de mostrar que há esperança para os condenados, basta que, a exemplo, de Dante, chamado a testemunhar os sofrimentos de os que têm como norte o poder, a ambição, a inveja, o orgulho, a fraude, o apego à materialidade procurem seguir o caminho que os leve ao Paraíso através da Arte e do Amor, cujos símbolos são, respectivamente, Virgílio e Beatriz.

Há algo, no entanto, que fica subjacente, no poema de Dante, por causa da grande evidência dos heróis míticos aqui já citados, em suas catábasis, e da obviedade de Virgílio ter sido escolhido como guia do poeta florentino. Há na camada mais profunda da composição do poema de Dante o Mito de Er, criação de Platão, para a alegoria da responsabilidade, um dos componentes que ajuda o homem a encontrar a Justiça dentro de si, no Livro X da República (614a-621d). Er, guerreiro morto em batalha, pronto para ser incinerado, como parte das honras fúnebres, é chamado ao Hades e brindado com uma nova vida, para que dê testemunho, aos demais mortais, seus contemporâneos, das penas e das delícias que suas vidas poderão ter a depender de suas escolhas. No processo de reencarnação — estamos falando do que se encontra em Platão, não da doutrina espírita —, cabe às almas e unicamente a elas a escolha da vida que querem ter na nova subida ao mundo material. A depender do que se escolhe, vêm as consequências, cujos frutos, doces ou amargos, terão de ser, necessariamente, provados.

A coceira atormenta as almas de falsificadores e falsários ▪ Canto XXIX
Diante das cruentas guerras intestinas, das prisões, perseguições, exílios, condenação à morte, de sua época, Dante cria um grande quadro crítico-reflexivo da natureza humana, empenhada em constantes atrocidades, movidos pela ganância eterna do efêmero prazer da riqueza, do sexo ou do poder, principalmente vindos daqueles que seriam os guardiães da probidade, da justiça e da moral – governantes, magistrados e clérigos. É um testemunho a não ignorar.

COMENTE, VIA FACEBOOK
COMENTE, VIA GOOGLE

leia também