O jornalista Kubitschek Pinheiro tem se dedicado a uma tarefa literalmente edificante: percorrer a cidade...

Ao sabor do tempo

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O jornalista Kubitschek Pinheiro tem se dedicado a uma tarefa literalmente edificante: percorrer a cidade em busca de prédios, moradias, recantos turísticos que foram por alguma razão abandonados por seus proprietários ou pelo Poder Público. Ele tem nos revelado inúmeras preciosidades arquitetônicas deterioradas em razão desse abandono e da inclemente ação do tempo. Faz-nos então olhar a cidade com olhos nostálgicos e uma ponta de culpa.

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Kubitschek Pinheiro
Numa de suas últimas postagens, enfocou uma moradia que despertou em mim e em meus familiares gratas recordações. Com a sua inquietude e franqueza características, Kubi adentrou as dependências do chamado Castelinho do Miramar. Essa é uma construção impossível de não ser notada por quem transita pela Epitácio Pessoa e, na altura da Igreja Nossa Senhora de Fátima, volta os olhos para o aclive que introduz o tradicional bairro pessoense. Fica na esquina das ruas Coronel Souza Lemos e Manoel Gualberto, e chama a atenção por ser revestida de pedras escuras que lhe dão, realmente, a aparência de um castelo.

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GSView
O sobrado foi construído em 1968 por meu pai – ou seria melhor dizer por minha mãe, que o projetou com a ajuda de um arquiteto. Nele moramos por cerca de 15 anos, após os quais foi vendido no início da década de 1980. Ignoro o nome do comprador, que achou por bem revesti-lo de pedras e promover recortes em forma de ameias na sua parte superior. Com isso lhe deu a aparência de uma fortificação medieval.

Não discuto as razões do novo dono, pois já então vivíamos tempos ameaçadores. Nossas casas ou apartamentos correm o risco de ser invadidos por ladrões que, além de roubar, ameaçam nos tirar a vida. Encastelar-se deve ser o sonho de muita gente para escapar a esse tipo de ameaça. Pode-se também pensar, claro, em alguma nostalgia ligada a figuras do Medievo, como reis, rainhas, príncipes e donzelas que povoam o imaginário de muitas pessoas. Ou mesmo numa sombria fixação em personagens como o que Bram Stoker celebrizou.

Não cabe aqui discutir os motivos que levaram ao pétreo revestimento, e prefiro me concentrar no que senti ao ver pelas lentes de Kubitschek o estado em que se encontra a vetusta construção. Cada cômodo despertou lembranças do
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clubecabobranco
tempo que em que vivíamos lá. A família era grande, e todos ainda estavam em casa. Eu dormia e estudava num dos quartos que, no primeiro andar, se abria para um terraço de onde se via (e ouvia) o Clube Cabo Branco. Não conseguia dormir com o barulho durante o Carnaval, mas suportava isso sem queixas. Às vezes lia ou escrevia enquanto a poucos metros o pessoal, ao som da música estridente, esbaldava-se no salão. Nesse quarto curti minhas ressacas da juventude e padeci os efeitos da síndrome do pânico decorrente da insistência em cursar Medicina (curso que eu acabaria abandonando).

Na sala de copa, entre tantas reminiscências gustativas, acorreu-me a do pavê branco feito por minha mãe – relíquia culinária que data da nossa infância. O cômodo contíguo à sala principal, usado como garagem até que se construísse o abrigo definitivo para o carro, despertou-me a lembrança da cervejinha que o “velho” costumava beber aos sábados, sozinho, ouvindo Roberto Carlos cantar a música que fez para o pai. O escritório me reavivou a memória da biblioteca, onde livros de literatura conviviam com as gramáticas que eu começaria a estudar para, com 22 anos, dar aulas no Curso 2001 – o início de tudo.

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Chico Viana com sua mãe (à direita) e irmãos Acervo do autor
Subi com a câmera do jornalista a escada de mármore, onde certa vez posamos para uma foto. Alguém tivera a ideia de nos distribuir sobre os degraus numa “escadinha”, conforme a altura de cada um. Como filho mais velho, e mais alto, fiquei no primeiro junto com a minha mãe. Os menores se postavam nos degraus superiores. Na foto não aparecem a minha irmã mais velha, já casada, e o meu pai, que orientava o fotógrafo.

Visitar uma casa onde moramos é reencontrar nela o que fomos um dia, mesmo que ali haja marcas de velhice e deterioração (e por acaso essas marcas também não existem em nós?). A visão dos cômodos desgastados e sujos faz com que a lembrança do que ali vivemos se desfaça numa espécie de poeira espiritual. A casa, mais do que cenário, aparece como um reflexo da própria vida. O Castelinho me suscitou essas lembranças, que parecem ingênuas e não se coadunam com o destino que lhe está reservado; segundo me disseram, ele vai se transformar numa hamburgueria.

Vida que segue. Não deixarei de ir lá comer um hambúrguer, que certamente terá o requinte que os mestres-cucas costumam dar a esse alimento industrial. Mas duvido que isso supere o prazer que eu experimentava ao degustar o pavê branco de Dona Ruth.

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  1. Bravíssimo, Chico! Doces memórias com um toque de resignada melancolia. O pavê de sua mãe é sua madeleine proustiana. Parabéns. Francisco Gil Messias.

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    1. Anônimo4/5/24 10:53

      Valeu, Gil! Não passaria despercebida ao grande literato a analogia proustiana, que vem bem a propósito. Abraço!

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