A velhice tem dessas coisas. Andamos com passos mais lentos por dias que correm em velocidade hipersônica. Espantosamente, maio nos chega sem que tenhamos a percepção exata do primeiro quadrimestre que agora se encerra. Vem-me, então, a lembrança de Joca, meu filósofo de botequim preferido e, infelizmente, também finado. “Quando a gente era menino um ano durava dez”, ouvi dele, certa vez.
Tenho preferência por abril, mês do suplício de Tiradentes, mas, ainda, do primeiro desembarque de soldados portugueses neste solo tropical, para azar dos povos nativos estimados, na ocasião, em uns oito milhões de indivíduos espalhados desde o litoral até os confins da Amazônia, como quer boa parcela dos historiadores.
Defensor ferrenho do repouso amplo e irrestrito, Joca lastimava que, em 1938, Getúlio Vargas não houvesse incluído o 22 de abril no decreto-lei 486, sobre a matéria, a fim de evitar o ócio em demasia: dois feriados consecutivos, o de Tiradentes (no dia 21) e o do Descobrimento (no dia seguinte). Quisessem brigar com Joca, situassem o Brasil como país com o maior número de feriados em todo o mundo. “Mentira”, assim respondia, de pronto, aos que disso se queixassem.
Este meu amigo, então, tratava de comparar as nossas 12 datas nacionais com as 18 da Índia e da Colômbia, com as 16 da Coreia do Sul, Tailândia e Líbano, ou com as 15 da Argentina, China e Finlândia. Não é assim? Então, não briguem comigo, pois a pesquisa é dele, um delicioso anarquista. Quanto a mim, nunca me atrevi a contraditá-lo com acréscimos estaduais nem municipais.
A propósito do tema, sinto pena dos que não ouviram seu relato dos eventos formidáveis de abril de 1500, quando a frota de Pedro Álvares Cabral se aproximava da atual Bahia ao cabo dos 44 dias de viagem desde Lisboa até a praia onde então corria, alvoroçado, um grupo de mulheres e homens nus.
Descrever aqueles navegantes, costumes e desafios era um dos seus momentos de glória. Joca falava disso como se ele próprio houvesse se espremido entre os mil e quinhentos ocupantes das três caravelas e dez naus. “Banheiro? Nem pensar, meu camarada: arriavam-se as calças e punham-se os traseiros para fora, a fim de que a sujeira fosse ao mar. E, isto, na frente de todos, até na de Frei Coimbra”, assim nos informava com as suas certezas.
A trilha de dejetos lançados desde Lisboa na travessia do Mar Tenebroso não seria, para si, a coisa mais chocante que o pobre frade ainda veria naquele abril. O danado do Cabral – assegurava Joca – enganara sua gente. Havia dito às mães, mulheres e filhos dos marinheiros que todos iriam para as Índias, beirando a costa da África, rota conhecida e há muito já feita em busca de seda, cominho, cravo e canela. Essencialmente, dos temperos destinados a dar sabor e graça aos pães, às carnes e aos legumes da velha Europa.
Lá para as tantas, o homem teria ordenado o desvio dos barcos para dentro do Atlântico, sem direito a reclamações. Estaria certo de aportar num mundo novo, tal como aconteceu a Colombo. É preciso dizer que nosso Joca, com tal relato, contraria os defensores da casualidade da descoberta cabralina.
Mas a ele passemos a palavra: “Ninguém pense que foi uma travessia fácil. Mais difícil, porém, seria o retorno. Com base nos problemas já enfrentados por outros navegadores, Cabral e seus comandantes estimavam que apenas 500 deles conseguiriam voltar para suas famílias”.
Enfim, em 22 de abril, vencidas as calmarias, tormentas e doenças, eles estavam, ali, em porto seguro, à exceção dos 150 ocupantes da nau comandada por Vasco de Ataíde, sumida no oitavo dia da largada. Já sob o sol dos trópicos, Nicolau Coelho era despachado num escaler, com homens armados, a fim de se entender com aquela gente nua, de maus modos, mas pacífica. Joca não deixava de lembrar que as balas e os canhoneios, então, já eram coisas dos bem-vestidos.
Do restante dessa história eu soube por outras fontes. Dado o sinal para o desembarque da tripulação inteira, houve gente a pensar que havia chegado ao Paraíso, aquele mesmo, de Adão e Eva, que muitos europeus ainda supunham perdido num recanto qualquer da Terra.
Pero Vaz de Caminha, o escrivão da frota, tinha uma missão complicada diante de si: contar a Dom Manuel I, o rei, aquilo que viam, sem tirar nem pôr. O que ele escreveu sem qualquer tipo de censura, foi a certidão de nascimento disso que hoje temos por Brasil. Trata-se, também, de documento inscrito, em 2005, no Programa Memória do Mundo, iniciativa da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura, a famosa Unesco.
Concordo com Joca. Getúlio também deveria ter inscrito o 22 de abril na lista das nossas mais vastas celebrações. Aquele, sim, foi acontecimento sem o qual nenhum de nós, naturais destas zonas, no sentido geográfico do termo, não existiríamos. Trocando em miúdos, abril é o mês que demarca nossa existência neste mundão de Deus. Mereceria, mesmo, dois feriados. Não é não?