Então, acorda. Pelas três da madrugada. E o que vem, como uma imensa onda de alegria e alívio: era apenas um pesadelo em forma de son...

A solidão tinha lá suas vantagens

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Então, acorda. Pelas três da madrugada. E o que vem, como uma imensa onda de alegria e alívio: era apenas um pesadelo em forma de sonho, ou sonho em forma de pesadelo, que, felizmente, acabou. E, de novo, recrimina-se como pode ter tido um sonho assim. Retomar a dormir trazia o risco de voltar. Se era intensa a sua dor, também era imenso o seu alívio. Ele era normal, afinal.

Pensa naquele instante como a vida parece ser feita da mesma matéria dos sonhos, e que, afinal, como vociferava Macbeth, que o ser é apenas um ator num palco, representando uma história cheia de fúria e som, contada por um idiota.
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RANT 73
Como Shakespeare sabia tanto das coisas, e outras pessoas não sabiam absolutamente nada. Ele, entre elas. Houve um tempo que se imaginava sábio, depois abandonou essas presunções, no confronto com a crueza da realidade. Lembrou de Schopenhauer, para quem a vida e os sonhos são meramente as páginas de um mesmo livro. Sendo até um tanto otimista.

O que restava era levantar, então. Levantar e prosseguir. A solidão, afinal, tinha lá suas vantagens. Foi o que exatamente pensou, porque, naquele exato momento, percebeu como seu pensar era na verdade estar falando alto sozinho. Aliás, um dos prazeres de estar perfeitamente só era falar sozinho. Dar voz aos pensamentos. Não haveria ninguém com quem se preocupar, ou para imaginar que falar sozinho poderia ser um ato de loucura. E, por consequência, pode até comemorar feito um rei, como se o mundo existisse apenas porque ele existia.

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O que persistia, no entanto, era sua perplexidade diante de um mundo sem ninguém. Enquanto tomava café, lembrava-se como no ano de quinhentos e alguma coisa houve uma enorme tragédia. Um nevoeiro desceu sobre o mundo, durou o ano inteiro, e houve muita fome e mortes. Parece que foi provocado por erupções vulcânicas. As cinzas subiram, fecharam o azul do céu. Causaram resfriamento da terra, essas coisas. Ano 536. Lembra agora. Teve também uma peste. O professor de História falava desse fato tão bizantino. Dizem ter sido um dos piores anos para a humanidade.

* Excerto do livro de Hélder Moura, 'A insana lucidez do ser', publicado recentemente (Editora Ideia), disponível na 👉🏽 Livraria do Luiz.

"Em certa passagem o autor se pergunta como os sonhos, sendo realizações do desejo, tomam a forma de pesadelos. Seu texto responde bem a isso, pois a nossa mente não é composta apenas pelo libertador e gratificante id; há nela também o superego, que nos sonhos projeta as suas garras. O pesadelo, como observa Freud, satisfaz o desejo dessa inclemente instância censora. (Chico Viana)"


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