De fato se sentiu os efeitos da seca em 1980. A fome, companheira histórica, volta a bater na porta dos lares das terras secas do Brasil.
O ano de 1981 choveu tudo que tinha pra chover, entre os dias 12 de março e 1° de abril. Depois esquisitou e nenhum lucro. Nos roçados, sequer a tamboeira de milho. Nem o Feijão de Moita carregou.
A fome entrou avassaladora e de vez nas casas do grande sertão nordestino.
O alvorecer do ano de 1982 trouxe alguma esperança, mas o tempo não ajudou. Mais estiagem e fome.
Aí veio 1983. Seca total. Demolidor. Nem roçado fizeram.
A tragédia nordestina se repetiria agora com o país saindo da noite tenebrosa da Ditadura Militar, que tudo de ruim que poderia fazer contra os povos pobres do Nordeste fez.
O que chamamos de seca no Nordeste é, de fato, essa conjunção de longas estiagens com equívocos, dramas e opções políticas e socioeconômicas dos poderes central, estaduais e locais.
Em outras palavras: não existiria ou não existirá seca no Nordeste com políticas econômicas, sociais, culturais, educacionais, científicas e tecnológicas coerentes com a realidade dos sertões nordestinos e social e ambientalmente comprometida com os mais humildes.
A seca é, portanto, uma opção política, de classe.
O calendário das secas coincide com o calendário das crises econômicas ou da lógica de desenvolvimento do Capitalismo Brasileiro.
Não é coincidência que, no mesmo Brasil que no Nordeste se viveu a grande seca de 1979—1983, o país tenha vivido a crise econômica da dívida externa para atender os interesses internacionais e o FMI tenha vindo "socorrer" a economia brasileira, empurrando as classes trabalhadoras na ladeira do desemprego, da fome e do desespero.
São fenômenos intimamente conectados. Crises de 1929—33; 1951—53; 1958—60.
Toda grande "seca" há uma crise econômica nacional como pano de fundo.
Na realidade, as estiagens do Semiárido Brasileiro são fenômenos naturais previsíveis, preveníveis e que, a rigor, não deveriam causar impacto socioeconômico nenhum.
É óbvio que o caboclo nordestino que tem sua nesga de terra e nela e dela vive não faz essas conexões.
Ora, o mundo dito científico não faz.
Quer tratar um fenômeno isolado do outro. Como se fosse possível.
Não é.
Falo aqui na condição privilegiada de quem viveu e sentiu a seca na pele de um lado e, do outro, teve a oportunidade de se debruçar sobre o fenômeno e desvendar sua essência, com suas contradições e explicações econômicas e políticas.
Vi caçambas de lixo carregando gente faminta e despejando nas Frentes de Emergência de 1983.
Vi corpos esqueléticos em desespero por água e comida, vivendo em barracos de taipa esburacadas.
Vi corpos seminus arrastar-se em léguas tiranas a mendigar punhados de farinha.
Cicatrizes que não lavam em minha alma. Imagens que não saem da minha memória.
Ainda lembro detalhes da penúria das mulheres que trabalhavam naquelas frentes de emergência, sendo abusadas sexualmente, repetidamente, por homens secos, brutos, quase animais, também atores naquelas tragédias.
Lembro Tonha passando de braços em braços de homens empoeirados, preparados para possuí-la, em atos sexuais em série, intercalados por doses de cachaça bebidos e derramados sobre o corpo, numa espécie de Sodoma sertaneja, onde se afogava a fome com o pecado do prazer.