Que não se pense jamais que estou a querer fazer cortesia com o chapéu alheio. Jamais. O que pretendo é tão somente apresentar uma modesta sugestão de melhor aproveitamento do belo e decrépito casarão que pertenceu ao doutor Odilon Ribeiro, na avenida João Machado. Um imóvel de considerável valor arquitetônico e histórico, símbolo de uma época de nossa cidade, de uma sociedade e de conjunturas econômico-sociais desaparecidas, mas que resistem, como testemunho a ser devidamente preservado, na pedra e no cal da casa desabitada há tempos, mesmo que não de todo abandonada, eis que ainda guarda livros e algum mobiliário do culto proprietário falecido, conforme mostrou recentemente o atento jornalista Kubitscheck Pinheiro nas redes sociais.
Passamos na arborizada avenida, belamente adornada por mangueiras mais ou menos antigas, orgulho de nossa urbe “mais vegetal que urbana”, e não podemos deixar de ter a atenção voltada para o casarão que se impõe à nossa vista. Lá está ele no terreno amplo, protegido por artísticas grades de ferro, rodeado de velhas e imensas árvores a lhe defenderem do sol e da chuva, um quase palácio de fidalgos ares parisienses, uma pequena joia de arquitetura talvez indefinida, mas nem por isso menos apreciável, uma imagem concreta dos recursos e do gosto de seus senhores originais, um típico sobrado de Gilberto Freyre, sucessor urbano da casa-grande rural. E, ao vê-lo, nos perguntamos perplexos sobre a misteriosa razão da degradação física do imóvel, seu ar de decadência e até mesmo de ruína, que não condiz absolutamente com os sabidos meios dos herdeiros atuais.
E o natural pasmo só aumenta quando pensamos que a casa pertenceu, até sua morte, a um dos mais lúcidos intelectuais paraibanos, um dos mais reconhecidos gilbertólogos do Brasil, ao lado de Edson Nery da Fonseca, um homem culto, apreciador de artes e de antiguidades, sabedor, melhor que ninguém, da importância da preservação de casas e edifícios antigos, testemunhas cada vez mais raras de nosso passado de mais de quatro séculos. Fosse o imóvel de alguém inculto, poder-se-ia até compreender sua lamentável degradação, mas sendo de quem foi, é inexplicável, sob todos os pontos de vista.
É um direito da família não desejar dar um destino à casa. Mas deixá-la como está, como se entregue à sua própria sorte, não é uma solução. Nem para os familiares nem para a cidade. Esta poderia ganhar muito com a sua aquisição e posterior aproveitamento do imóvel para alguma finalidade pública, de preferência cultural. Algum museu ou mesmo uma fundação para preservar a memória de doutor Odilon seriam opções muito viáveis, com benefícios para todos. A prefeitura municipal ou o governo do Estado deveriam tomar a iniciativa nesse sentido, diante da inércia dos atuais proprietários. E a APL, o IHGP ou apenas a professora Ângela Bezerra de Castro, grande amiga de Odilon, poderiam ser os intermediários desse frutífero encontro de interesses.
Diria Gertrude Stein que uma casa é uma casa é uma casa. Mas nem sempre. Ou nunca é só uma casa. É sempre muito mais, assim como uma rosa, pelo que significa para as pessoas. Todo objeto carrega uma subjetividade que o individualiza e valoriza, que o faz único e insubstituível. Talvez, indo a um extremo, o objeto seja o de menos, pois mais vale a subjetividade que o define. Sem o sujeito, nada existe. Ou, se existe, é como se não existisse, pois dele ninguém tem conhecimento. Foi o que afirmou Albert Camus numa certa palestra em que ficou encurralado diante de uma provocação: “Para mim, o que não conheço não existe.”.
E significado é o que não falta na casa da avenida João Machado. Para a família, ela guarda lembranças inestimáveis, alegres ou não, toda uma memória de tempos idos em cada ambiente e em cada coisa. Para a cidade, é o passado preservado, a história viva como um livro aberto para os contemporâneos e os pósteros. Ali os estudantes de arquitetura, de história, de sociologia e de tanta ciência mais poderão encontrar farto material para pesquisa e produção acadêmica. Por isso que a casa não é apenas uma casa.
A posteridade de doutor Odilon está de certa forma assegurada pelo livro que escreveu sobre a obra de Gilberto Freyre (Gilberto Freyre Ou O Ideário Brasileiro, Editora Topbooks, Rio de Janeiro, 2005). É um estudo importante sobre o pensamento do grande pernambucano, mas com uma característica que o torna especial: foi escrito por alguém que muito conviveu com o autor de Casa-Grande & Senzala, que privou de sua amizade e de sua intimidade doméstica, tendo, portanto, inumeráveis oportunidades de conversar com o sociólogo, colhendo impressões, informações e esclarecimentos. Mas, sabemos, exceto nos casos de autores de grande público, a posteridade dos livros é relativa e não raro precária. No caso de doutor Odilon, a recuperação e transformação de sua casa em museu ou centro cultural, no exitoso modelo da Fundação Casa de José Américo, contribuiria ainda mais para a perenidade de sua memória.
Sem dúvida nenhuma, é um caso para os familiares e os órgãos governamentais pensarem a respeito com carinho. Com todo o respeito, a sugestão está dada.