Fobos (Φόβος) e Dêimos (Δεῖμος) são os filhos diletos de Ares, o deus da guerra (Marte para os latinos), que sempre o acompanham nas batalhas, como se pode ver na Ilíada. Eles estão presentes, secundando o pai, desde o Canto IV, início da guerra, no poema homérico, cujo episódio é por mim denominado de tideidomaquia, ou seja, a batalha do filho de Tideu, no caso Diomedes, respondendo às provocações de Agamêmnon. Na retomada dos combates, entre Argivos (nome genérico para os Gregos) e os Troianos, no início do décimo ano do cerco à cidadela de Ílion ( Ἲλιος, antigo nome de Troia, daí Ilíada), Diomedes, cujo epíteto é “O bom de grito”,
mostra o seu vigor guerreiro, como um rio de fortes torrentes, devastando as hostes inimigas, antes mesmo da carnificina operada por Aquiles, a partir do Canto XIX, por sua vez, comparado a um cavalo de corrida vencedor (Canto XXII).
Mas voltemos às duas divindades guerreiras, Fóbos e Dêimos, para dizer que o primeiro representa o Medo que faz correr — o verbo fobéw (φοβέω), em grego, significa correr de medo —; já o segundo é o medo que paralisa, sendo também chamado de Terror. Esta diferença semântica entre os dois termos é fundamental, tendo em vista que a presença de Ares numa luta de homens, tomando o partido dos Troianos, ainda que estes homens sejam heróis, já é algo a deixar os pobres mortais cheios de temor. Quando ele se faz acompanhar dos filhos é ainda pior, porque não há alternativa possível para os humanos: se correr o bicho come (Fobos), se ficar o bicho pega (Dêimos). Ou para usarmos um ditado tipicamente grego, é tentar escapar de Cila e cair em Caríbdis (para alguma dúvida sobre os termos, recomendo a leitura do Canto XII da Odisseia).
Como uma forma de contrabalançar a peleja, devido à ausência de Aquiles, brigado com Agamêmnon (Canto I), Atena concede a Diomedes o vigor necessário, de modo que ele possa enfrentar a terrível ameaça dos deuses no campo de Batalha, o que define a Ilíada como uma teomaquia, uma batalha de deuses.
Insuflado pela deusa, o herói cretense chega a entrar num combate com Ares, ferindo-o. Fere até a sua, de Ares, querida e desejada Afrodite, que também se encontra presente na batalha, tomando o partido do seu filho, o troiano Eneias.
Façamos um pequeno parêntesis, para dizer que o mundo ocidental aproveita o odiento e odiado deus da guerra, nas palavras do próprio pai, Zeus, a quem ele vai se queixar da ousadia dos humanos (Canto V), e o homenageia, colocando o seu nome no planeta Marte, cuja cor vermelha lembra o sangue derramado pela divindade nas batalhas, por ser ele o deus das guerras cruentas. A guerra inteligente, se é que existe alguma, pois todas são de uma burrice e crueldade inominável, é o campo de ação de Palas Atenas, a deusa da sabedoria, nascida da cabeça de Zeus. No caso do planeta Marte, calhou não apenas que ele se nos apresenta com uma cor avermelhada, mas também que possui duas luas, cujos nomes, naturalmente, são Fobos e Dêimos.
O planeta Marte e seus dois satélites: Fobos e Dêimos ▪ Ilustração: Nasa
Voltemos ao que interessa. No meio da semana que passou, o meu amigo Hermance Gomes Pereira, juiz e músico multi-instrumentista, que já me deu a honra de se fazer presente em alguns cursos ministrados por mim, na pós-graduação em Letras, na UFPB, publicou uma crônica, no MaisPB, sobre a morte (θάνατος), esta irmã do sono (ὓπνος), como diz Homero, intitulada “Descansando em paz”. Trata-se, naturalmente, de crônica bem-humorada sobre a morte, porém, mais especificamente, sobre o medo de ser enterrado vivo. Concordo com o meu bom amigo escritor que este é um dos medos que nos assaltam: acordar vivo, dentro de um exíguo caixão, com sete palmos de terra por cima,
sem ter como dali sair, e sofrer, então, uma morte lenta, dolorosa e angustiante.
Ao expressar o seu medo, Hermance põe em prática, para mim, o conceito de fóbos, do medo que faz correr. Todos pedimos que isto não aconteça, procurando fugir de uma situação aflitiva como essa. Como eu disse, porém, a crônica vem recheada de bom humor, fluindo com leveza e suscitando o prazer da leitura (espero que ele se faça mais presente no espaço). É no final, no entanto, que se encontra o melhor. Desculpem-me o leitor pelo spoiler, mas quando o texto tem suas qualidades, não há spoiler que o inutilize. É a minha compreensão. Além do medo que nos faz instintivamente fugir, Hermance fala do medo paralisador, até porque a situação não revela uma possibilidade de fuga. Trata-se não de acordar dentro do caixão sepultado, mas de estando morto, mortinho da Silva, o indivíduo perceber que foi sepultado ao lado de um chato de galochas ou de um desafeto. Imagine a pessoa não poder desviar-se daquele amigo ou conhecido que a encurrala, num canto de parede, e desanda a falar, sem parar, quando sequer temos como aplicar a Lei da Pausa da Respiração: quando o “amigo” parar de facundiar, para respirar, apertamos-lhe a mão e nos despedimos. Com o loquaz aprisionador, no entanto, não tem jeito, ele não respira, tem fôlego de mergulhador em apneia... Pobre de nós que ficamos à mercê de alguém que venha nos salvar.
Eis aí o verdadeiro Terror. Terror ad aeternum, por termos a consciência de que Hypnos, o Sono, não estará presente para nos ajudar no descanso eterno almejado. Libera nos a malo, Domine!
