Uma parte de mim
É multidão
Outra parte estranheza
E solidão
Ferreira Gullar
Ferreira Gullar
Acho que, desde muito pequena, fui uma criança solitária. Fazia muitas amizades na rua, no colégio, mas a saúde era frágil. Sofria com a garganta e tinha todas as mazelas que afligem as amígdalas. Desenvolvi uma paciência extra para ficar doente, perder aulas, tossir a noite toda, tomar lambedores e não poder tomar friagem, chuvinha fina etc. O que era normal para todos, para mim, era sempre um suspense. Gracias a la vida, tomei
chuva nos beirais da casa e no caminho das Lourdinas, chutando poças e poças.
Sempre lidei bem com as tardes longas, sentada no alpendre da minha casa na Praça Da Independência, contemplando a rua. Andava de bicicleta na minha Monark 64, olhando o trânsito, as pessoas, as árvores daquele lugar. Quando ia ao “comércio”, entrava nas lojas de tecido, armarinhos, bancas de revista e saía perambulando pela cidade. Até hoje gosto de fazer isso. Mas, faço pouco. A violência e o calor me impedem de ser uma flâneur pelo Centro, como tanto gostava. Herdei esse hábito de minha mãe que, até mais dos 80 anos, inventava qualquer pretexto para ir à Lagoa, Visconde de Pelotas e fuçar as lojinhas em busca de algum objeto não identificado.
Gosto de fazer compras sozinha, no mercado, no shopping ou em qualquer evento. Sozinha sou rápida. Não me deixo influenciar pelo gosto/opinião do outro e tenho um prazer imensurável com o silêncio e com o meu tempo de fazer as coisas. Caminhar, então… se fazemos sozinha é uma imersão no inconsciente e abstração. Hora de pensar e refletir. O juízo dá voltas e por vezes resolve equações. Sair sozinha para almoçar ou tomar um drink é sempre uma aventura literária. Gosto de ficar imaginando a vida das pessoas, ouvindo as conversas (as pessoas falam muito alto) e dando asas à imaginação.
Quando morava em família — marido e filhos — em casa, por ser uma camaleoa no quesito adaptação, logo me adaptei ao tempo das crianças e do marido (nem tanto). Apreciava muito fazer as coisas juntos, o que era um luxo, pois, com a vida moderna, todos têm os seus tempos outros, individualmente e, para se agregar, há de se ter o apoio de todos, o que nem sempre acontece. Via-me uma mãe/mulher como uma centopeia, buscando essa harmonia, fazer coisas juntos, tarefa quase intransponível.
Passados os anos, a minha solidão no viver e no fazer sedimentou-se e hoje sou essa pessoa. Toco a vida. Organizo. Tomo providências. Perco-me. Atordoo-me, e claro, peço socorro, sim, em caso de saúde ou algo mais robusto. Por vezes, essas atitudes flertam com a reclusão, com autossuficiência negativa ou até mesmo com a vaidade de não compartilhar as coisas com as amigas. Não é. Até pode ser essa autossuficiência, mas é algo construído na minha infância e adolescência, e mesmo na vida adulta. Instinto de sobrevivência. E prazer mesmo. Findei gostando da minha companhia e da minha consulta.
Escrevo tudo isso porque estou aqui pensando nos paradoxos do ser humano. Sou essa mulher que vive sozinha, que se basta no seu viver solitário, mas que também tem um lado agregadora, do coletivo, do gostar das pessoas, de conversar, de observar a natureza humana e de tentar mudar o mundo ao seu redor, da forma que lhe cabe. Agora, numa idade que nem sei mais qual o lugar, tudo vai ficando mais introspectivo. Talvez permaneça o desejo por desvendar o outro. A vida é sempre um mistério. E assim também são as pessoas. A beleza está nesse desconhecido.
“Nenhum homem é uma ilha, completo em si próprio; cada ser humano é uma parte do continente, uma parte de um todo”
John Donne
John Donne