Motivado pelo debate iniciado pelo professor Milton Marques Júnior , resgatei algumas frases anotadas quando vivia na Espanha e costuma...

Sobre páginas e paredes

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Motivado pelo debate iniciado pelo professor Milton Marques Júnior, resgatei algumas frases anotadas quando vivia na Espanha e costumava passear vagarosamente pelas ruas e praças das cidades pelas quais passei.

As pichações talvez sejam uma forma de arte efêmera, expressa nas paisagens urbanas, num desafio às normas estabelecidas. Posicionadas por onde as pessoas transitam, possuem a capacidade de transmitir mensagens subversivas, políticas e culturais de maneira acessível, proporcionando um espaço de resistência e afirmação de identidade.

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Lawrence Chismorie
Com as devidas exceções dos exageros e abusos, os grafites levam o colorido das artes plásticas e da expressão poética a todos os transeuntes. As ruas são o palco, a galeria democrática para a arte urbana, numa mensagem que alcança públicos diversos, sem barreiras socioeconômicas.

As pichações também funcionam como um registro temporal, documentando mudanças na sociedade e nas mentalidades ao longo do tempo. Cada spray, cada tag, é uma camada na narrativa urbana, testemunhando momentos históricos, movimentos culturais e transformações sociais.

Certa vez, dirigindo por uma estrada da Cantábria, ingressei por um trecho que compunha o território de Astúrias, quando li a inscrição no paredão de rocha às margens da rodovia: “cantabrones de m...”. A ofensa, dirigida a todos os cantábrios por algum vizinho asturiano, intrigou-me. O neologismo, que reunia o gentílico ao adjetivo “cabrón”, que na Espanha não possui o simpático sentido que lhe é atribuído no
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Celyn Kang
México, denotava um sentimento de forte rivalidade, bairrismo e desprezo, não muito comum em tempos de paz. Aquele, porém, não era um caso isolado em termos de declarações hostis e anônimas, pichadas em muros, paredes, rochedos e até placas de sinalização, que li ao viajar pela península. Numa placa que sinalizava a entrada para a autonomia de Madrid, divisei o grafite, posto logo abaixo da palavra “Madrid”: “es Castilla!”. A inscrição, feita por algum nacionalista casteliano, reclamava de um pedaço do seu território ter sido separado para servir de capital para um país ao qual, suponho, ele acredita que não deveria pertencer. Também encontrei outras manifestações, escritas a spray, que reivindicavam a independência de Leon, que é parte da autonomia de Castilla y Leon; e da Galícia, que nas pichações separatistas é grafada como “Galiza”, cuja pronúncia em galego é “galiça”.

Em Aragon vi a sentença “bajo Madriz”, escrita em espanhol errado, emulando o som do “d” final das palavras proferidas com sotaque ibérico, no qual a quarta letra do alfabeto, quando aparece no fim de um termo, emite um som parecido com o do “z” cortado ao meio. A militância política, nesse caso, atropelou a ortografia.

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ShonEjai
Más pichações podem ser corrigidas, inclusive em seu sentido. Deparei-me com um grafite remendado que julguei genial. Um grafiteiro xenófobo escreveu numa parede de Zaragoza: “fuera imigrantes!”, mas teve a sua frase alterada por um pichador humanista que rasurou as letras “imig” e superpôs outras quatro, deixando a mensagem assim: “fuera ignorantes!”

Deixando a temática separatista, outras anotações políticas saíram dos muros e ficaram gravadas também em minha memória: “lo personal es también político”, “un muro sin grafittis és un muro sin rebeldes”, “las paredes hablan lo que la gente se calla” e “nos estan desapareciendo”.

Quando ingressamos na esfera das máximas sapienciais encontradas nas ruas, posso apontar diversos apotegmas e aforismos que me marcaram, como, por exemplo, esse: “estudiarse a si mismo, es el arte mas difícil”. Há, porém, outros do mesmo quilate proverbial: “lo imposible solo tarda un poco mas”, “la sonrisa es una línea curva que endereza todo”, “el problema és que tú eres la solucion”, “somos lo que hacemos para cambiar lo que somos”, “prohibido hipotecar tus alas”, “reinvidiquemos el niño que todos llevamos
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MS
dentro”, “solo los peces muertos siguen la corriente” e “intentalo una y outra vez hasta que el miedo te tenga miedo”.

No âmbito das sugestões e declarações poéticas e amorosas, os muros também são profícuos. “Si no tardas mucho te espero toda la vida”, é uma frase intrigante porque funde o vigor da paixão com algum grau de razoabilidade. “Sin poesia no hay ciudad”, deixou escrito o autor numa das páginas que compõe a coletânea que é Madrid. “Apaga la tele, leete um libro y haz el amor”, refletiu outro pichador madrilenho. “Me visito tu ausencia”, disse o poeta saudoso, que se irmana com um outro que escreveu “estrañar es el costo de los buenos momentos”. “Andábamos sin buscarnos, pero sabiendo que andábamos para encontrarnos”, recitou na superfície da parede o afortunado que encontrou a sua metade perdida.

Uma pichação política, em especial, comoveu-me. Gosto de associá-la às boas causas as quais todos nós devemos servir, em nome do bem. Simples, como são os melhores e mais fortes versos poéticos, ela é, simultaneamente, um chamamento e uma reflexão que cala muito, pelo menos para mim, e para todos os prestam atenção naquilo que pode ser garimpado nos caminhos pelos quais passamos: “Ven, seremos!”

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