Maria. Tão somente Maria, como a mãe de Jesus. E não precisava de mais. Por esse nome simples, belo e universal, com o seu inafastável quê de divino e ao mesmo tempo tão humano, tão comum, tão popular, todos a chamavam. E era o bastante para ela atender prestativamente ao chamado, fosse de quem fosse. Sobrenome não era necessário nem lhe importava. Sobrenome é coisa das formalidades do mundo, das vaidades do mundo, e ela viveu a vida inteira como que à margem do mundo exterior, pois seu universo, aquele que lhe bastava, resumia-se ao âmbito da casa da família que a acolhera desde mocinha e na qual exerceu todos os ofícios domésticos da época, ou seja, babá, cozinheira,
lavadeira e por aí vai, espécie de sobrevivente mucama em plena segunda metade do século XX. Não que fosse tratada como escrava ou algo semelhante a isso. Pelo contrário. Pois logo foi adotada plenamente – e afetuosamente — como membro do clã familiar, como ocorreu no seio de tantas casas brasileiras de antigamente.
Trago à tona o exemplo da casa de Alceu Amoroso Lima e de Quinquina, sua primeira babá, uma “mãe preta” remanescente da escravidão, que, segundo suas palavras, encheu seu lar “de bondade e de alegria” enquanto viveu. Esse fenômeno, mais afetivo que sociológico, já fora registrado por Gilberto Freyre em Casa-Grande & Senzala, de 1933. Essa capacidade portuguesa-brasileira de verdadeiramente integrar nas famílias aqueles e aquelas que a elas se juntavam para servir na intimidade dos lares. Uma integração que se fazia de início pelo interesse utilitário das partes e aos poucos ia sendo tomada, moldada e dominada pela afeição, pela amizade e pela dedicação recíproca, até se transformar num sentimento difuso que nem sempre ousa verbalizar seu nome: amor. E era essa amorosa capacidade de acolhimento do outro, de mistura de raças e de classes – que aliás continua a existir – que distinguia e distingue a sociedade que se formou nos trópicos brasileiros, passaporte do Brasil para um futuro que teima em não chegar.
Maria viveu 82 anos e partiu recentemente. Nunca casou nem teve filhos; sequer, que eu saiba, um namorado. Mas deixou numerosa e agradecida descendência, que a acompanhou permanentemente em sua existência, que dela cuidou zelosamente nos anos finais e que a velou e seguiu até a derradeira morada. Uma coisa bonita de se ver. Os filhos de Seu Adalberto e Dona Anita e os seus respectivos filhos, todos presentes, amorosamente presentes, fielmente presentes. Como era para ser e não podia deixar de ser.
Como disse acima, seu universo era a casa. Esta lhe era suficiente, esta atendia de modo pleno suas poucas necessidades e dela nunca se afastava, salvo para acompanhar a família em algum passeio ou para ir ao comércio comprar algum tecido para fazer roupa ou uma lembrancinha para presentear alguém. E o interessante é que permaneceu fiel ao velho comércio do Centro da cidade, às lojas da Beaurepaire Rohan, Aristides Lobo e adjacências. Nada de shoppings, nada de Epitácio Pessoa, nada de Édson Ramalho. Imagino que muito estranhou – e sentiu – o desaparecimento da 4400, do Armazém do Norte e da José Araújo, endereços célebres em sua mocidade e madureza.
Em seu velório, na cerimônia de suas exéquias, o diácono falou uma coisa muito certa – e emocionante: que ela tinha sido uma autêntica seguidora de Cristo, pois tinha vindo ao mundo exclusivamente para servir. E é um fato. A vida de Maria foi toda dedicada ao serviço dos semelhantes, próximos ou não. Não desejou outra coisa a não ser servir. Sem dia nem hora para fazê-lo. O justo salário e os direitos trabalhistas sempre lhe foram assegurados, para além da lei, mas eram meros detalhes de que ela nem tomava conhecimento. Por gosto e livre decisão própria, bastavam-lhe a casa, a comida e o afeto que a supriam com abundância. Tal como aconteceu com muita “mãe preta” de outros tempos.
Entretanto, ela não era afrodescendente. Seus traços eram mais ameríndios e seus cabelos ainda escuros na velhice o comprovam. Pergunto-me de onde terá vindo essa sua genética. Sempre bem humorada, risonha e falante, mas sem ser incômoda, não guardou no temperamento a reserva típica dos aborígenes, se é que deles descendeu. E com esse modo de ser cordial encheu a casa e a vida dos que livremente adotou. E marcou. Como a mim e aqueles que lhe foram próximos, para além da casa e da família. Mais do que muita gente pretensamente “importante” ou apenas metida a besta.
Só descobri seu nome completo no dia de seu sepultamento. Maria Alexandre Barbosa. Foi uma revelação, que me fez ficar a pensar durante alguns instantes. Maria Alexandre Barbosa. A minha, a nossa Maria de toda a vida. Como a mãe de Jesus, simplesmente Maria. E de mais não precisou. Para viver feliz, morrer acarinhada e ir diretamente pro céu.