Assim escreveu Brás Cubas, personagem de Machado de Assis, em suas célebres memórias póstumas, sobre uma de suas amantes: “Marcela amou-me por quinze meses e onze contos de réis”. Pode haver frase mais atual? E é nessa atualidade que reside o gênio machadiano tornado clássico das letras brasileiras e universais, pois clássico é exatamente o livro que se mantém atual através do tempo. Quinze meses e onze contos de réis. O tempo e o preço de um amor fugaz, desde o início condenado à efemeridade e ao vultoso custo financeiro, como costuma acontecer, desde que o mundo é mundo, com relações desse tipo. Os amantes, no fundo, sabem que será assim, pois não se trata de amor verdadeiro e incondicional, e no entanto a ele se entregam com o ímpeto dos apaixonados e o desespero dos suicidas. Tudo para acabar na quarta-feira, como diz a canção, mas que seja eterno enquanto dure, como diz o poeta. Pois só dessa maneira terá valido cada minuto e cada tostão.
Ainda hoje me espanto com a ironia do nosso bruxo nessa pequena frase plena de sabedoria e sabor. Chego a sorrir quando a releio. Ela me faz lembrar imediatamente dos improváveis casais que encontro amiúde nos shoppings, restaurantes e hotéis (lugares de consumo e prazer) a expor, sem nenhum pudor, a imensa e explícita diferença de idade dos amantes, inevitável causa de constrangimento para os demais circunstantes – ou pelo menos para alguns deles, certamente os mais obsoletos, como eu. Na maioria dos casos, é o homem septuagenário de cabelos pintados e pança redonda com a mocinha esbelta de seios e nádegas empinados. Um contraste estético e talvez um desafio social que em nada incomoda os pombinhos, alheios que estão (ou não?) ao mundo circundante. Quinze meses e onze contos de réis. Mas...e daí, parecem dizer os enamorados cheios de vigor.
Causam inveja esses pitorescos casais? A alguns, sim; a outros, não. Incluo-me entre estes últimos, não por puritanismo mas por senso do ridículo. Coisa que, bem sei, varia de pessoa para pessoa e constitui mercadoria cada vez mais rara nos tempos atuais. O que faz com que os que fogem do grotesco sejam vistos agora como dinossauros alienados. E viva a vulgaridade ostentatória!
Entretanto, longe de mim qualquer viés moralizador, aviso logo. Pois detesto os moralistas de toda espécie, salvo os filósofos, pois estes, desde os gregos e romanos, não pretendem converter nem dar lições de moral a ninguém. Marco Aurélio, Montaigne e La Rochefoucault, argutos observadores do mundo, entre outros, são apenas bons companheiros de jornada para seus leitores e não gurus de falsas ortodoxias.
Marco Aurélio, Montaigne e La Rochefoucault CC0
Essa tirada de Brás Cubas lembra-me uma parecida de uma velha senhora chamada Dona Finfa que, há muitos anos, ao informar as horas a uma sua devedora, assim se expressou, espertamente: “São oito horas e vinte mil réis”. Será que ela terá lido Machado? É possível. O fato é que repetiu, sabendo ou não, a espirituosidade machadiana. E se ela recebeu seu crédito ou não, são outros quinhentos.
Reflito se essa frase de Brás Cubas não se aplica a boa parte dos relacionamentos amorosos, sejam de que tipo forem. E até a certas amizades que afinal se revelam apenas interesseiras. Diz a voz do povo que “não existe almoço grátis”. E é fato. Por que razão então seria gratuito o amor (e os favores) das Marcelas da vida? A índia nua que recebeu na praia de Porto Seguro os marinheiros ávidos de Cabral só se entregou com gosto mediante o espelhinho e a quinquilharia ofertados pelo conquistador. E não esqueçamos o filósofo Nelson Rodrigues que disse, para escândalo dos hipócritas: “O dinheiro compra até amor verdadeiro”.
Claro que há amores e amizades além do vil metal – e ainda bem. Pois do contrário a vida e o mundo seriam mais infernais do que são. Em que e em quem poderíamos acreditar, se tudo fosse submetido ao interesse, com o eterno sacrifício da virtude e da verdade? Precisamos crer algumas vezes, mesmo que no geral sejamos céticos por conta da experiência vivida.
Brás Cubas não se iludiu um minuto a respeito de Marcela. Nem Marcela sobre Brás Cubas. Esta é a verdade. Ambos sabiam, desde o início, o que faziam, como faziam e com quem faziam. E assim tem sido – e é - , desde sempre, no mundo do amor, do sexo, dos afetos e das simpatias. Com ressalvas para as exceções que confirmam a regra. O gênio de Machado não descobriu a roda. Apenas (?) soube, com talento, ironia e uma modernidade assombrosa, colocar em palavras “a vida como ela é”, através de seu personagem defunto: “Marcela amou-me por quinze meses e onze contos de réis”.
Por aí se vê a genial perspicácia de Machado de Assis, um homem pacato, do lar, burocrata e cidadão exemplar. De seu chalé pequeno-burguês lá no Cosme Velho e de seu birô na repartição onde trabalhou quase a vida inteira, esse homem aparentemente comum, de pouca fala e ouvidos atentos, soube observar e captar a sociedade carioca de seu tempo, a sua aldeia tolstoiana, com seus personagens e costumes locais, para daí alcançar a humana universalidade em seus romances da maturidade. É provável que Machado nunca tenha tido uma Marcela em sua vida, até porque não tinha dinheiro para bancá-la, ao contrário de Brás Cubas. Mas isso não o impediu de colher as reais experiências alheias e transplantá-las para sua ficção como se fossem suas. É isto que fazem os romancistas – principalmente os grandes e os geniais. Como diria o agregado José Dias, de Dom Casmurro, amante dos superlativos: Bravíssimo!