Saudade no peito
É como fogo de monturo
Por fora tudo perfeito,
Por dentre fazendo furo
Patativa do Assaré
Patativa do Assaré
E não é verdade mesmo? Saudade gosta de fazer furo. Vem como um florete afiado dar suas espetadas em nossas recordações. Foi o que me aconteceu dias atrás. Essa espada traiçoeira andou me ferindo, deixando um corte que teima em não cicatrizar.
Filha caçula, a raspa de tacho de uma prole de sete. Estava ela terminando o curso de engenharia, ensaiando as asinhas para esticar seu primeiro voo solo. Era dezembro do ano de 2019. O mundo festejando, mas...
Esse pedacinho de mim, a pouco saída da adolescência, estava experimentando complicações nessa arte imponderável que é a arte de viver. Sim, viver é uma arte exigente.
Pois, essa menina (para mim, sempre uma menina) estava tentando combater o bom combate. Começando a ver a vida do outro lado da cortina, experimentando algumas frustações, vendo alguns sonhos se desfazerem, o coração levando umas espetadas. Enfim, não era um bom momento. Como dizem, que nada está tão ruim que não possa piorar, essa minha avezinha teve que acumular outro revés. Esse bem dolorido.
Sempre gostou de bichos, cães em especial. Anos antes se encantara com uma ninhada e ali fora escolher o menorzinho. O bichinho olhou para ela e quando o olhar diz mais do que palavras, não foi difícil traduzir o que aquele tímido grunhido queria dizer: Leve-me com você. Ela levou.
Era um cãozinho da raça labrador. Ganhou o nome de Paxá. Esse principezinho otomano ganhou o coração de minha filha e de todo mundo lá de casa. Criado como um lorde e com todas as prerrogativas de um grão-vizir, Paxá era um danado. Tocava terror com suas estripulias: comeu sandálias, arrancou plantas do jardim, roeu pé de mesas e cadeiras, ia beber água nos vasos sanitários...
Mas havia um outro lado da moeda. Paxá parecia gente. Afetuoso, sempre ficava aos meus pés quando estava por aqui rabiscando minhas coisas, não desgrudava da minha filha. Depois foi se acalmando e então sua docilidade aflorou.
Quis o destino que aquela relação de benquerença não perdurasse, Então, naquele dezembro, numa manhã quente de todos os sóis, Paxá deitou-se na sala e não quis mais se levantar. Seria o calor? Não! Dali ao veterinário. À noite tivemos que dar a notícia à minha filha. Nosso parceiro se fora.
Por que isso? Fiquei pensando. Minha filha, enfrentando alguns dissabores e agora mais esse. Por quê? Ela nem conseguiu ver seu amigo pela última vez. Trancou-se no quarto e escreveu o que ela chamou de poeminha. Era assim:
Por que você se foi tão cedo?
Seus pelinhos ainda estão pela casa.
Seu cantinho ainda o espera na sala
Você se foi sem se despedir.
Você se foi sem fazer as malas.
Com você aprendi a ser melhor
Com você eu nunca me senti só
Sem você falta um pedaço de mim
Meu coração já foi partido antes.
Mas nunca tanto assim
Saudade do seu olharzinho pidão
Querendo um pouquinho de carne
Ou até mesmo fatias de melão
Desejando um pedacinho de qualquer coisa
Que por descuido caísse no chão
Você mudou nossa rotina
E eu espero que seja bem recebido
Pelos outros cãezinhos aí em cima
Pois saiba que por aqui
Você foi o grande parceirinho de Nina
Você sempre tão espaçoso
Agora tem todo firmamento
Talvez tenha virado uma estrela
Ou o que quer que seja
Mas sei que vai olhar por mim
Onde quer que você esteja
Esse poeminha não tem regras
È livre, como você sempre foi
É só pra avisar pro mundo
Que te amarei eternamente
E quem sabe um dia
Nós nos encontraremos novamente. Com amor, mãe.
Remexendo arquivos nessa engenhoca aqui encontrei o “poeminha”. E aí, me perdoem, bateu uma saudade, dessas bem doloridas, da filha que está longe, do tempo que Paxá iluminou nossas vidas. O remédio foi escrever.