O pequeno Theo, de quatro aninhos, gemeu de dor, mal o sol iluminava as águas de Boa Viagem. As pernas curtas e os passos miúdos o le...

Pétalas ao vento

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O pequeno Theo, de quatro aninhos, gemeu de dor, mal o sol iluminava as águas de Boa Viagem. As pernas curtas e os passos miúdos o levaram à janela do apartamento de onde se pode divisar fatias do mar, brecha após brecha, entre os edifícios. Ali, se apoiou e chorou.

O pequeno Theo tinha, então, um coraçãozinho com agonias de adulto. E tinha vocabulário suficiente para frases de amor e saudades. “Uma flor para você, Bisinha”.
A brisa quente deste fim de Verão deve ter apanhado de suas mãos uns ticos de jasmim para o transporte até o leito da bisavó, a alguns quilômetros de distância. Os céus, afinal, sempre haverão de atender às crianças. Não pregam isso?

Eu soube da morte da querida Lourdes, em mensagem telefônica à minha irmã então encarregada pelas primas residentes no Recife de comunicar o fato aos parentes paraibanos. Era coisa já esperada. A falência orgânica agravada a cada novo amanhecer vencera, enfim, a batalha pela sobrevivência por ela há muito travada. Lourdes deu seu último suspiro em casa, na companhia dos seus, aos 82 anos. “Descansou”, comunicava-nos a segunda das três filhas.

Aos 17 anos de idade, ela se casou com o Tio Boanerges, seu primeiro e único namorado. Ele, uns 15 anos mais velho e em segundas núpcias. O namoro, às escondidas, daria na fuga do casal em dia de grande rebuliço na pequena Pilar, onde este irmão caçula da minha mãe se estabelecera como dono de mercearia ao deixar o Recife e, ali, um casamento fracassado.

A sociedade preconceituosa do fim dos anos de 1950 não admitia uniões desse gênero: a de uma filha de família religiosa, bem-criada e educada com um homem desquitado. E a confusão se formou.

Não ocorriam em vão os temores da minha mãe. O pai e os irmãos da moça buscaram aqueles dois por todos os recantos possíveis e os ânimos somente arrefeceram quando todos foram convencidos por amigos em comum de que Lourdes, jovem e bela, estava em boas mãos. Infeliz no primeiro casamento, Boanerges, trabalhador, honesto, decente, tinha o direito de refazer a vida. “É o genro de quem mais gosto”,
diria, anos depois, a mãe dela a Seu Juca e Dona Vininha, meus pais.

O tempo trouxe para o casal três mulheres tão bonitas quanto aquela de cujo ventre vieram ao mundo. Que sangue bom o do querido Boanerges, ele mesmo um belo homem, quando no vigor da juventude. A primeira das meninas herdou a má sorte inicial do pai e saiu do casamento sem filhos. Lourdes a teve por perto até o último fôlego. Mas a boa linhagem continuou com as outras duas. Clarissinha, filha da segunda delas e mãe de Theo, é uma festa para os olhos. E não há o que dizer de diferente em relação às crias da caçula, uma menina e um menino encantadores.

Boanerges não conheceu Theo. O coração o matou de repente, num fim de tarde, quando a neta era bem pequena. Tinha com ela os apegos que até hoje tenho a Miguelzinho, de quem sou avô por obra e graça da união com a moça que a boa sina tirou do Rio Grande do Norte para morar na minha rua, eu com 33 e, ela, seis anos mais nova. Miguelzinho vem do nosso primeiro filho.

Ocorre-me, agora, que em idade assemelhada à do bisneto de Lourdes, este meu neto, hoje com onze anos, me fez suspender uma leitura para tratar de questão gravíssima: “Vovô, quando você e minha avó vão virar estrelinhas?”. Tranquilizei-o:
“Ah, meu camarada, nós estaremos no teu casamento”. Ficou felicíssimo.

Um anjo bom deveria retirar dos pequeninos esse tipo de preocupação. E a eles deveria ministrar, chegada a hora, o remédio pronto e acabado, certo e eficaz, contra essas dores e padecimentos.

O pequeno Theo, seus passos miúdos, sua agonia e suas pétalas ao vento me fizeram chorar. A avó, em cuja companhia se encontrava, gravou sua caminhada até a janela, tão logo fora informado da existência de mais uma estrela no céu. O choro da mãe denunciara a triste ocorrência. De moto próprio, ele colheu uma flor do jarro doméstico, despetalou-a e a fez passar pela tela de segurança do edifício com o endereço da bisa. Tinha, apesar da pouca idade, a consciência da enorme perda.

Pobre, Theo. Percebo sua desolação e escuto seu gemido no vídeo curto compartilhado por minha prima com os parentes mais próximos: “A bisa morreu e eu não gosto de ficar triste”. Bom saber que o tempo logo aplacará suas dores. E que, muito mais tarde, terá a gravação de um momento único e a lembrança de um bem-querer que este mesmo tempo desvanece. Que assim seja.

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