Pagu é o apelido mais conhecido de Patrícia Galvão, a célebre escritora e agitadora cultural paulista. Este apelido foi criado pelo poeta Raul Bopp, que pensava que o nome dela era Patrícia Goulart, daí Pagu. Mas ela foi mulher de muitos nomes e pseudônimos, como Zazá (apelido de família), Pat, Patsy, Mara Lobo (nome adotado pelo Partido Comunista, ao qual ela era filiada),
Ariel, Solange Sohl, King Shelter e mais outros. Como se vê, várias mulheres numa só, o que retrata bem a pluralidade que sempre a caracterizou. Essa Patrícia Galvão quase mítica nos é apresentada por Maria Valéria Rezende no livro Patrícia Galvão – Pagu, militante irredutível, Editora Rosa dos Tempos, Rio de Janeiro, 2023, cuja leitura recomendo aos interessados por essa curiosa personagem de nossa cultura do século XX, muito relacionada com o Movimento Modernista de 1922 (do qual ela não participou, ressalte-se), dada sua ligação literária, política e conjugal com Oswald de Andrade, de cuja união nasceu um filho, Rudá.
A então menina Maria Valéria conheceu Patrícia em Santos, com quem fez amizade e de quem só muito depois descobriu o apelido Pagu. Ou seja, primeiro a menina conheceu a mulher e só posteriormente a escritora e a militante política e cultural. Isso fez grande diferença para Maria Valéria, pois ela não conheceu uma celebridade, mas alguém de carne e osso, culta e especial, é certo, mas ainda despojada, para a infante, da auréola lendária que revelar-se-ia a seguir.
O encontro de Valéria com Patrícia se deu quando esta já vivia uma vida mais calma e reservada, quase anônima, em Santos. Tinha, segundo a primeira, um olhar triste, um jeito triste, que talvez já anunciasse sua morte precoce, aos 52 anos, com uma aparência de bem mais. Frequentava à época, quando saía do expediente no jornal em que trabalhava, o Bar Regina. Fumava e tomava cuba-libre (ou Samba, uma mistura de cachaça e Coca-Cola), enquanto conversava livremente com os jovens que aparecessem para trocar ideias sobre arte e cultura. Uma espécie de consultora boêmia e gratuita, com muito a ensinar aos menos vividos. Deve ter sido para seus ouvintes santistas o que, imagino, Virginius da Gama e Melo foi para seus contemporâneos pessoenses nas noites da Churrascaria Bambu, na Lagoa: um pitoresco guru, em meio aos cigarros, as bebidas e as ricas conversas sobre todos os assuntos. Valéria chegou a ver Oswald de Andrade, mas não o conheceu pessoalmente.
Pelo relato de Valéria, vê-se que não foi fácil a vida de Pagu. Ao contrário do que pensam alguns, não nasceu na burguesia, como Oswald, mas em família modesta. Depois, ao se tornar comunista, o partido obrigou-a a viver pobremente entre os operários e a renunciar à vida intelectual. Foi perseguida, presa e discriminada, mesmo quando esteve ao lado de Oswald de Andrade, enfant terrible da burguesia paulistana, herdeiro milionário que desbaratou a fortuna paterna e morreu na miséria. Sua saúde, a de Pagu, também nunca foi boa. E pelas fotos, constata-se que não foi nenhuma formosura, no máximo uma mulher interessante, levando-se em conta a sua desenvoltura, seu nível cultural e suas ousadias comportamentais numa São Paulo ainda provinciana e conservadora. A beleza, sabemos, nunca é óbvia; só as tolas pensam que é.
Escreveu um livro, Parque Industrial, que é considerado o primeiro romance proletário do Brasil, antecipando a literatura engajada de Jorge Amado. Vejam só. Só isto bastaria para inscrever seu nome na história das letras brasileiras. Colaborou em jornais, distribuiu panfletos, viajou, conheceu pessoas importantes. Uma delas foi o último imperador da China, nada menos. E em sua ida a Moscou, para visitar o túmulo de Lênin, deu-se conta “da pobreza do povo nas ruas, em contraste com o glamour em que vivem os oficiais do Exército Vermelho.”. Definitivamente, não era cega – nem boba.
Maria Valéria reconhece e proclama a influência intelectual e política que dela recebeu. Sua opção pela vida religiosa teve outras razões, mas na literatura e em sua dedicação aos mais pobres é clara a sombra benfazeja de Patrícia/Pagu. Esse livro recente é sua maneira de expressar gratidão e de contribuir para a posteridade da outra. E a obra é duplamente importante porque nos ajuda a melhor conhecer as duas autoras, pois à medida em que vai nos revelando Pagu, Maria Valéria também vai contando muito sobre si mesma. Uma das curiosidades que relata, por exemplo, é a reiterada e criativa alegação, durante os anos da ditadura, de seu fantasioso parentesco com o ministro Eliseu Resende, invenção essa que a livrou de possíveis aborrecimentos em delegacias pelo país afora. Era já, percebe-se, a imaginação da futura ficcionista dando sinais de vida.
Quis o céu ou o destino que Valéria viesse viver e trabalhar entre nós, produzindo seus livros, palestrando e educando. A casa de sua congregação religiosa (Congregação Nossa Senhora – Cônegas de Santo Agostinho), nos Bancários, é um retiro de espiritualidade, sem dúvida, afinal ali moram freiras. Mas é também, por sua causa, um centro irradiador de cultura, de onde tem saído algumas das obras mais premiadas das letras nacionais dos últimos anos. Definitivamente, é um orgulho para a Paraíba. E queira Deus que disso saibam os paraibanos, para que ela seja reconhecida e homenageada como merece.
Do mesmo modo que o paulista W. J. Solha, o cearense Modesto Siebra Coelho, o pernambucano Neroaldo Pontes e tantos outros valores de outras terras adotados por nós, Maria Valéria Rezende é coisa nossa.