Cilgin havia lido, não lembra bem se em Freud, que os sonhos são desejos não realizados. Mas, e os pesadelos? São também desejos não realizados? Mesmo os mais tenebrosos? Que estranho pensar assim. Era como se as pequenas tragédias pessoais que ocorrem em sonhos também fossem desejos não realizados.
Essa percepção gerava uma sensação de estranheza. De algo no mínimo inquietante. Isso, certamente, deve estar na secreta profundidade das coisas que não entendemos bem. Sabemos e até sentimos que existem, que estão lá, mas não sabemos bem o que seja, ou por que existem. Às vezes, até queremos que não existam, porque realmente perturbam. Mas, é como se elas não pudessem deixar de ser, de existir. Parte do ser. Parte dessa aventura de viver.
Levantar foi quase um suplício. Andar por ali. Então, ele não se lembra muito bem quando, em algum momento, sentiu uma estranheza no ar. Uma esquisitice. Talvez tenha ocorrido quando, provavelmente, tomava café, meio que distraído com a sensação de um dia que era outro. Ou ele próprio sendo uma outra pessoa.
Uma estranheza, sim. Não ouvia sons de gente, de carros e motos passando, de buzinas. Ouvia apenas o som de seu mastigar mecânico. Era tão esquisito, que quase dava pra ouvir seus próprios pensamentos, retumbando na cabeça, cobrando entender. Silêncio esquisito esse, num mundo de tantos e variados barulhos. Sons familiares de uma manhã, que muitas vezes, de tão acostumados, nem nos damos conta. Mas, estão ali se repetindo nos segundos, cobrando alguma atenção num espetáculo que é essa vida cotidiana.
Não, não tinha os tais sons. E seguiu estranhando, enquanto lavava os pratos, ouvindo apenas o barulho da água escorrendo pelos talheres, sons que nunca havia dado alguma atenção. Eram evidentes agora, porque havia um silêncio no mundo lá fora. A água que escorria pelos seus dedos, e gerava um tipo novo de som, da água que roça a pele, que bate na xícara, que escorre dos pratos. Mas, e lá fora? Só um silêncio inusitado.
Depois, experimentou como nunca antes o som da roupa que tirou e, depois, a roupa que vestiu, um roçar suave, arrepiante, quase como uma carícia. De fato, era algo novo, experimentos novos, sons que nunca teve a oportunidade de apreciar. E, depois, o som do sapato pelo apartamento até que a porta se abre e, lá fora, há um sol. Algumas nuvens. Quase dava pra ouvi-las se movendo lá em cima.
Era uma estranheza crescente quando, na garagem, ligou seu carro, atento a todos os barulhos. O portão que abre para a rua. Mas, não havia gente nas ruas, nem nada. Trânsito algum. Pôde sair tranquilamente e dirigir sem topar com nenhum outro veículo. Era como se as ruas fossem inteiramente suas. De estranheza, aquilo já era uma estupefação. Onde estava, afinal, o mundo caótico de todos os dias?
* Excerto do livro de Hélder Moura, 'A insana lucidez do ser', publicado recentemente (Editora Ideia), disponível na 👉🏽 Livraria do Luiz.
"O texto de Hélder Moura é forte, denso e carregado de curiosas referências literárias e musicais. Nele há também espaço para especulações filosóficas quanto ao sentido da vida e ao nosso propósito no mundo. O domínio narrativo gera expectativa sobre o desenvolvimento da trama, que envolve o leitor mesmo ante o absurdo das situações apresentadas - um absurdo que lembra Kafka mas se torna, digamos, decodificável com o auxílio da psicanálise. (Chico Viana)"
"O texto de Hélder Moura é forte, denso e carregado de curiosas referências literárias e musicais. Nele há também espaço para especulações filosóficas quanto ao sentido da vida e ao nosso propósito no mundo. O domínio narrativo gera expectativa sobre o desenvolvimento da trama, que envolve o leitor mesmo ante o absurdo das situações apresentadas - um absurdo que lembra Kafka mas se torna, digamos, decodificável com o auxílio da psicanálise. (Chico Viana)"