Rir e chorar são gestos diferentes que visam a efeitos bem diferentes. Ambos responsivos, liberalizantes – mas a liberação do riso, s...

O riso, o choro

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Rir e chorar são gestos diferentes que visam a efeitos bem diferentes. Ambos responsivos, liberalizantes – mas a liberação do riso, seca e sutil, vem da cabeça. A do choro, emotiva e aquosa, procede do coração. E o riso não é puramente resposta, é já alternativa.

Uma das vantagens do riso em relação ao choro é que o primeiro a gente é livre de fazer em mais lugares. Ninguém vigia ou condena o riso público, a não ser em
contextos que por natureza o excluem. Um velório, por exemplo. Ou uma dessas reuniões de academias.

Chorar é o mais das vezes estridente e desenha feias caretas no rosto. O que não impede que, entre nós, exista uma estranha curiosidade pela lágrima. Somos uma sociedade machista e que fiscaliza com um fascínio mórbido a emoção. Quem já não observou o afã com que as câmeras de TV, nos noticiários ou num desses programas de entrevistas, procuram enfocar alguém que chora? O rigor maldoso com o qual se espreita o filete que desponta num rosto transtornado? No fundo com inveja, obviamente, da ave rara que tem a coragem de expressar seus sentimentos.

Mas o choro é mais feio do que o riso. No caso das mulheres, possui a agravante de desfazer a maquiagem, o que é o mesmo que despi-las em outro plano. Já rir é fino, a não ser para as pessoas que não têm a percepção das fronteiras e gargalham. Rir custa fisiologicamente menos, exceto para quem usa prótese malfeita – dessas que fazem volume na boca e provocam no indivíduo o comentário desalentado:

⏤ Ah, pelo menos os dentes tinham a medida exata. E eram amolados.

Rir não é o melhor remédio. É o melhor meio de evitar que se tome remédio. Dizem que quem canta seus males espanta; é certo, mas às vezes a um preço muito grande para o ouvido dos outros. Quem ri esconjura os males sutilmente, e com a vantagem de não incomodar os vizinhos.

Cuidado com o sujeito que nunca ri. Ele é mais perigoso do que o que nunca chora. Quem não chora abafa o coração. Quem não ri abafa o cérebro, e pode acabar neurótico ou mesmo psicótico. O primeiro pode não chorar por timidez, machismo, repressão familiar – mas como justificar o segundo? Talvez não ria porque seja incapaz de discernir entre o sensato e o absurdo, o plausível e o inverossímil. Não rir é uma falha interior ligada à inteligência, e com danosas repercussões sobre o caráter. O indivíduo “sério” comete mais facilmente assassinato, suicídio ou um ato terrorista.

Quem riu, compreendeu. E compreendeu numa dimensão profunda. Estabeleceu uma cumplicidade firmada, não na comunhão de afeto ou de emoção, mas na de espírito. Identificou-se com o outro em termos de conceito e visão do mundo.

Rir, tudo bem, mas nunca fora de hora. Nada mais desarmônico do que o riso errado. É uma prova de descompasso com o próprio gênero humano. Num encontro social, tem efeito pior do que o choro errado. Para este há complacência, é uma questão de ser a pessoa mais emotiva. Já o riso sempre compromete. Prova disso é que ninguém jamais perguntou a outrem, desconfiado:

⏤ Você está chorando de quê?

Mas se pergunta com facilidade, os punhos preparando-se para o soco:

⏤ E você aí, de que é que está rindo?

Porque o riso atesta, julga, sentencia — tudo ao mesmo tempo. Sendo uma manifestação primeiro intelectual, diz respeito às camadas nobres e privativas do ser humano, que se define como o único animal que ri.

O riso, enfim, não é instintivo. Não nasceu com a espécie. Veio depois, muito depois; veio quando foi possível refletir sobre a nossa derrapagem, a falta de saída, o definitivo quiproquó. O jeito foi rir, como supremo consolo.

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  1. Anônimo5/3/24 07:49

    Texto completo, Chico. Disse tudo - cronisticamente. Precisamos rir e chorar, na hora certa. Nossa precária humanidade se revela nisso. Parabéns. Francisco Gil Messias.

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