A prima querida ainda guarda alguns biscuits da mãe dela e da nossa avó. Infelizmente, não sei que fim levaram aqueles que minha mãe tinha na penteadeira, na mesinha de centro e numas tantas prateleiras da sala de visitas. Elefantes, cervos, cachorros e gatos ali repousavam sem que neles eu e meus irmãos pudéssemos mexer, a não ser às escondidas.
Todos eram moldados à perfeição, com detalhes mínimos, tivessem o tamanho que tivessem. E uns eram bem pequenos. Cada patinha, cada olhinho e, no caso de figuras humanas, cada mão, pé, boca, ou nariz, possuía os traços e os contornos perfeitos. Os criadores daquilo, acho eu, retornaram ao mundo pelo caminho do aprimoramento ético e moral. “Vão fazer biscuit”, teriam os céus ordenado a escultores consagrados, a cada reencarnação, ao longo da história da humanidade.
Senti falta de um elefante em porcelana vitrificada, achocolatado, a primeira coisa percebida na mesinha da minha avó pelos que ingressavam na sala da nossa infância, ampla e com três janelas. O bicho equilibrava-se nas patas traseiras, fazendo-me lembrar de circos e domadores. Minha prima contou que ficara com uma das nossas tias.
Os biscuits foram o terceiro tema da conversa que travamos durante a visita que eu então lhe fazia depois de saber que ela estivera hospitalizada em decorrência de dores no peito. Recusa-se a fazer alguns exames mais invasivos recomendados pelo médico. O primeiro assunto, evidentemente, foi seu estado de saúde. O segundo, os parentes e amigos contidos no álbum familiar também herdado dos seus ancestrais e, por último, os biscuits, alguns, certamente, centenários.
Na casa da minha mãe, lá para o início dos anos de 1960, tínhamos três casais de namorados. E tínhamos duques e duquesas do Século 16, ou 17, assim quero crer, porquanto trajavam a vestimenta bem típica daquela gente endinheirada e de sangue azul, ao que se dizia e até hoje se diz dos advindos da nobreza. Heranças, em parte, da mãe dela, acredito.
Não sei, mesmo, que fim levaram. Talvez, tenham-se extraviado na mudança familiar, como assim também se foram os gibis que, neste caso, tive rasgados, impiedosamente, para a embalagem de copos, pratos, xícaras e pires. Chegado a João Pessoa antes dos móveis e utensílios domésticos, nada pude fazer para salvá-los. O fato é que chorei por quase uma semana a cada lembrança dessa perda. Lá se foram, irremediavelmente, de uma só vez, Roy Rogers, Zorro, Tarzan, Mandrake, Flash Gordon, Bolinha e os Sobrinhos do Capitão, Hans e Fritz, os peraltas que, fosse o caso, dona Chucrutz manteria a léguas dos biscuits.
Ninguém pense que tais esculturazinhas apenas replicavam bichinhos e gente rica. Um pequeno vendedor de jornal, com uma das mãos em concha para o anúncio das manchetes, era o que mais me atraía e encantava. Eu tinha pena dele e atribuía isso à “Canção do Jornaleiro”, toada de Heitor dos Prazeres composta em 1933, quando meu pai ainda era um rapazote. Diziam-me que o recifense Paulo Molin, “o garoto prodígio do rádio”, cantava isso na Tamandaré, aos 10 ou 11 anos de idade. Eis os primeiros versos numa melodia triste, dolorida: “Olha a Noite. Eu sou um pobre jornaleiro que não tenho paradeiro. Ai, de quem viver assim”.
Para que fui lembrar disso? Agora, preciso dizer que eu, também, fui entregador de jornal, antes que me viessem na cara os primeiros pelos. A falência paterna e a consequente perda da padaria do velho Juca, obrigou-me a trabalhar muito cedo, a fim de eu mesmo poder comprar meus sapatos e roupas. Já contei isso por aqui.
Mas voltemos à conversa com a prima. Pois bem, ela me informou que os biscuits têm, atualmente, produção caseira com “massa fria”, ou seja, sem precisão de ir ao forno, porquanto secam e endurecem ao relento. É coisa feita de amido de milho, cola branca, limão e vaselina. Eu soube por ela que os artesãos modernos, os que vivem da produção e comercialização dessas peças, podem comprar massa já pronta e em cores, nas casas do ramo, para ganho de tempo.
Curioso, recorri à Internet para melhor conhecimento do assunto. Li, então, que tudo começou na China, terra das finas porcelanas, no Século III, depois de Cristo. O Japão importaria a técnica no Século 16, repassando-a, em seguida, à Europa. Já ali, a Alemanha, a Inglaterra, a Itália e a França logo passariam a desenvolver suas produções em série. O que nossos antepassados e contemporâneos tiveram e têm nos santos recessos dos lares é o biscuit com biquinho francês. Talvez porque, ali e aqui, de tão lisa e moldável, a massa lembre a dos biscoitos.
As peças das quais mais gosto ainda advêm dos meus dias de menino quando ocupavam as mesas e prateleiras das mães e avós e quando tinham a guarda e o zelo dos parentes que já perdemos.
O septuagenário que me tornei, com seus poucos méritos e seus muitos defeitos, ressente-se dessas ausências com as dores de um Drummond amargurado ante a perda de sua Itabira. Ter isso, agora, apenas na parede da memória a ninguém acalenta nem consola. Não é não?