O poeta Marco Valério Marcial (42-102) é quase desconhecido do grande público atual, à exceção dos que são da área de estudos clás...

Marcial e a modernidade

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O poeta Marco Valério Marcial (42-102) é quase desconhecido do grande público atual, à exceção dos que são da área de estudos clássicos, mais especificamente, conhecedores da literatura latina. Marcial, no entanto, é um dos mais importantes poetas de todos os tempos, por uma série de singularidades. Tendo saído de sua terra natal, Bílbilis, no sudeste da Espanha, Marcial foi tentar a vida em Roma. Ali chegando no ano 65, foi abrigado pelo filósofo, tragediógrafo e epigramista Sêneca,
e por seu sobrinho, o poeta épico Lucano, ambos espanhóis como ele.

Em Roma, Marcial vive a vida de cliente (cliens), necessitando da benevolência, sobretudo financeira, de seus patronos (patroni), nem sempre benevolentes. Essa experiência, Marcial transpõe para os seus epigramas, principalmente, quando se refere às veleidades poéticas de alguns, cujos jantares, às vezes mirrados para os clientes, porém fartos para si próprios, eram, o mais das vezes, um pretexto para declamarem os seus enfadonhos e sensaborões poemas. Com seus epigramas irônicos, satíricos, jocosos e pornográficos, Marcial ajuda a construir um documento dos mais importantes, para que se faça o registro dos hábitos literários, sociais e sexuais de uma época. Vejamos dois epigramas sobre os patronos, em que se veem as suas veleidades poéticas e a discriminação na distribuição da ceia (tradução nossa):

Epigrama XLV, Livro III
Fugerit an Phoebus mensas cenamque Thyestae      ignoro: fugimus nos, Ligurine, tuam. Illa quidem lauta est dapibusque instructa superbis,      sed nihil omnino te recitante placet. Nolo mihi ponas rhombos mullumue bilibrem              5 nec uolo boletos, ostrea nolo: tace.
Tenha Febo fugido da ceia e das mesas de Thieste ignoro: nós fugimos da tua Ligurino. Aquela, certo, é lauta e provida de soberbos pratos, mas nada agrada, absolutamente, quando recitas. Não quero que me sirvas linguados ou tainhas de duas libras, nem quero cogumelos, não quero ostras: cala-te.

Epigrama LX, Livro III
Cum uocer ad cenam non iam uenalis ut ante, cur mihi non eadem quae tibi cena datur? Ostrea tu sumis stagno saturata Lucrino, sugitur inciso mitulus ore mihi; sunt tibi boleti, fungos ego sumo suillos; res tibi cum rhombo est, at mihi cum sparulo. Aureus inmodicis turtur te clunibus implet, ponitur in cauea mortua pica mihi. Cur sine te ceno cum tecum, Pontice, cenem? Sportula quod non est prosit: edamus idem.
Como tenha sido chamado para a ceia, já não venal como antes, por que a mim não se dá a mesma ceia que a ti? Tu recebes ostras nutridas no lago Lucrino; para mim, marisco sugado, abrindo a boca; tu tens cogumelos; eu recebo fungos suínos; tens um prato com linguado; mas para mim, com um peixinho. Uma dourada pomba com seus desmedidos traseiros te sacia; para mim, põe-se uma pega morta na sua gaiola. Por que, Pôntico, ceio sem ti, ainda que ceie contigo? Visto que a espórtula não existe, que seja útil: comamos o mesmo.

Mas o poeta não fica nisso. Além de fazer, de modo claro e explícito, o exercício do diálogo textual, que hoje chamaríamos, a depender da tendência crítica,
de Intertextualidade (Julia Kristeva) ou Transtextualidade (Gérard Genette), Marcial elege Catulo, poeta que viveu 140 anos antes dele, como seu mestre, dando as pistas da sua composição epigramática, que ele, Marcial, torna um gênero, mais do que uma forma poética. Acrescente-se toda uma discussão sobre o plágio e sobre os poetas medíocres, que querem ouvir as declamações dos poemas de Marcial, apenas para que eles próprios pudessem declamar os seus, e teremos, como uma das características marcantes, na sua poesia, um veio metalinguístico (tradução nossa):

Epigrama XXXVIII, Livro I
Quem recitas meus est, o Fidentine, libellus: Sed male cum recitas, incipit esse tuus.
O livrinho que recitas, Fidentino, é meu: Mas quando o recitas mal, começa a ser teu.

Epigrama LXIII, Livro I
Vt recitem tibi nostra rogas epigrammata. Nolo: Non audire, Celer, sed recitare cupis.
Rogas que eu recite para ti nossos epigramas. Não quero: Não desejas ouvir os nossos, Célere, mas recitar os teus.

Não falta aos epigramas do poeta, a preocupação com a brevidade da vida e com o reconhecimento da sua verve ainda em vida. O que reforça, no entanto, Marcial,
como um poeta além de seu tempo, é a consciência do livro como mercadoria, a certeza de que livro não foi feito para que o autor saia distribuindo-o, mas vendendo-o, pois ele precisa ganhar a vida, não dependendo apenas do parco auxílio da espórtula (sportŭla), que recebia de seus patronos, seja em forma de um cesto de comidas ou em dinheiro. Não só Marcial revela essa consciência, mas também aponta os lugares, na Suburra, bairro boêmio e mal afamado, pelos menos à noite, de Roma, onde se poderiam encontrar os seus livros expostos à venda (tradução nossa):

Epigrama LXXII, do Livro IV
Exigis ut donem nostros tibi, Quinte, libellos. Non habeo, sed habet bibliopola Tryphon. “Aes dabo pro nugis et emam tua carmina sanus? Non, inquis, faciam tam fatue.” Nec ego.
Exiges que eu te dê nossos livrinhos, Quinto. Não tenho, mas o livreiro Tryfon tem. “São, darei dinheiro por bagatelas e comprarei teus poemas? Não farei”, dizes, “tão tolamente”. Nem eu.
Ou seja, bem antes de qualquer escritor, Marcial, é, no mundo ocidental, um poeta consciente do que produz e de que não pode viver só de sonho ou de ideal. Ele precisa viver do mercado de suas obras. Atitude que nos remete, por exemplo, para um poema, dos menos conhecidos, do poeta romântico brasileiro Álvares de Azevedo, integrante da segunda parte de Lira dos vinte anos. Nesse poema, Álvares de Azevedo, epigramaticamente, fala da situação de penúria que o poeta tem, costumeiramente, de enfrentar:

Minha Desgraça
Minha desgraça não é ser poeta, Nem na terra de amor não ter um eco... É, meu anjo de Deus, o meu planeta Tratar-me como trata-se um boneco... Não é andar de cotovelos rotos, Ter duro como pedra o travesseiro... Eu sei... O mundo é um lodaçal perdido cujo sol (quem mo dera) é o dinheiro... Minha desgraça, ó cândida donzela, O que faz que meu peito assim blasfema, É ter por escrever todo um poema E não ter um vintém para uma vela.

Podemos, ainda, assinalar a importância de Marcial, como poeta sintonizado com as necessidades exigidas pela vida prática e com os acontecimentos de sua época, a partir dos versos estampados no Livro dos espetáculos (Liber spectaculorum) uma obra com 33 epigramas, tratando exclusivamente de um dos maiores feitos arquitetônicos da humanidade: a construção e a inauguração do Anfiteatro Flávio (Amphitheatrum Flauium), mais conhecido como Coliseu.

Começado pelo imperador Vespasiano (69-79), no ano de 72, o anfiteatro, que leva o nome da família (gens Flauia), foi inaugurado por seu filho, o imperador Tito, no ano 80. No Livro dos espetáculos, Marcial retrata de maneira diversa as várias munĕra, termo usado em latim para expressar os jogos gladiatórios: os combates entre gladiadores, sempre o ponto alto do espetáculo; as uenationes, espetáculo em que os gladiadores eram caçadores (uenatores), em embates com as várias feras levadas à arena, vindas de várias partes do mundo – rinocerontes, leões, tigres, touros, búfalos, ursos, bisões, javalis, elefantes... –, fosse, enfim, a execução de prisioneiros condenados à morte, usados como personagens nos mimos, pequenos espetáculos encenando um mito conhecido, como o de Prometeu, Orfeu, Dédalo e Ícaro, ou a tragédia envolvendo os amantes Leandro e Hero.

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Gladiadores em combate ▪ Mosaicos ▪ Villa Borghese, Roma ▪ Imagens Milton Marques Jr
Marco Valério Marcial, nascido no dia primeiro de março, mês de que ele herda o seu nome, é, a nosso ver, um poeta moderno, que soube entender, como ninguém, a modernidade de que fazia parte, reconhecendo os ecos das ruas e dos palácios, expondo a nu as mazelas dos plebeus e dos patrícios, não fazendo diferença entre ter como personagens a “turba togada”, numa referência à plebe, que lotava o anfiteatro, ou os portadores da laticlava, a toga patrícia dos senadores. Sua verve, sempre atual, não seria bem vista, hoje, pelos donos do poder, que se mostram infensos a críticas...

Vejam-se, dois epigramas a seguir. Um celebrando o dia do seu aniversário e o do seu amigo Quinto Ovídio; o outro, a merecida glória literária ainda em vida, concedida por quem de direito – o leitor (tradução nossa):

Epigrama LII, Livro IX
Si credis mihi, Quinte, quod mereris, natalis, Ouidi, tuas Aprilis ut nostras amo Martias Kalendas. Felix utraque lux diesque nobis signandi melioribus lapillis! Hic uitam tribuit, sed hic amicum. Plus dant, Quinte, mihi tuae Kalendae.
Se me crês, visto que mereces, Quinto Ovídio, amo tuas calendas de abril de aniversário, como amo as nossas calendas Márcias. Felizes ambos, luz e dia, para nós de assinalar com as melhores pedras! uma me atribuiu a vida; a outra, o amigo. Mais me dão, Quinto, as tuas calendas.

Epigrama I, Livro I
Hic est quem legis ille, quem requīris, toto notus in orbe Martialis argutis epigrammăton libellis: cui, lector studiōse, quod dedisti uiuenti decus atque sentienti, rari post cinĕres habent poetae.
Este que lês, que procuras, é aquele Marcial, conhecido em todo o orbe pelos seus falantes livrinhos de epigramas: a quem, leitor dedicado, deste, ainda vivendo e sentindo, uma honra que possuem raros poetas após a morte.

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