Faça desse modo: pegue uns vinte jenipapos, dois litros de aguardente e dois quilos de açúcar. Descascadas as frutas, passe-as num ralador, acrescente um pouco d’água e coe a calda disso resultante num pano que seja.
Cozinha Caseira
Habitante do Século 21, você, evidentemente, há de preferir um processador moderno desses que extraem suco puro de tudo quanto seja fruta. À falta disso, fará uso do bom e velho liquidificador nunca faltoso às cozinhas, mesmo as dos pés de serra onde a energia de Paulo Afonso começou a chegar em 1963. Falo, é claro, dos sítios do Nordeste brasileiro e de nossa formidável hidrelétrica.Dona Montinha, proprietária do Engenho Corredor até por volta de 1980, por aí assim, preferia cortar, ralar e espremer jenipapos, na mão mesmo. Os passos seguintes, ontem e hoje, passaram e passam, lá e fora dali, pela fervura da calda com açúcar até quase o ponto da cristalização. Com isso já resfriado, há que se diluir tudo na melhor cachaça que se tenha.
Pronto. Basta, agora, chamar os parentes e amigos para a degustação de um dos melhores licores que uma casa nordestina (sobretudo esta) é capaz de servir. A tempo: estarei sempre disposto a aceitar convites desse gênero.
Tive a felicidade de provar o doce de laranja que tanto encantou José Lins do Rego, o primo famoso da Dona Montinha. Não lembro do livro em que ele fala disso, mas apostaria no “Meus verdes anos”, porquanto de memórias. Dela provei, igualmente, outros licores. Porém, é o de jenipapo que, ainda hoje, me provoca suspiros a cada lembrança. Nunca mais o tomei tão cremoso, tão leve, tão bom.
Não sei muito das coisas e sabores do mundo, pois pouco tenho viajado. Mas me custa acreditar que haja, lá fora, combinações tão perfeitas quanto a da aguardente de cana com boa parte das nossas frutas. É uma lista que também inclui, jabuticaba, tamarindo, pitanga, laranja, maracujá, abacaxi, coco, umbu, cajá, goiaba, acerola e por aí vai. E não há como desprezar, ainda, o milho verde, o café, o cacau, nem o cravo e a canela bem ao gosto da Bahia.
Perdoem-me os criadores de receitas surgidas na Europa, ao que me contam, desde o Século 13, muitas com pera, framboesa, cereja, ameixa, maçã, avelã, menta e especiarias como alcaçuz ou anis, tudo isso em aguardente alemã, francesa, italiana, austríaca, escocesa e que tais, ao custo, não raramente, dos olhos da cara.
Por falar nisso, dizem que o grupo de parlamentares e dignitários brasileiros encarregado da reforma da Constituição Nacional, aquela de 1988 capitaneada pelo dr. Ulysses Guimarães, teve no “Poire William”, com seu penetrante aroma de pera, a bebida oficial. Pior, então, para o “Eau-de-Vie Mirabelle”, logo rejeitado.
Ah, Dona Montinha e seus licores... Um deles fazia enorme sucesso entre as garotas. Era quando o velho João Lins, dono da casa, contratava orquestra para o baile vespertino das terças-feiras de carnaval. Essa iguaria, com leite de coco e chocolate, ganharia o nome de “Fille Trompée”, invenção de um debochado estudante de francês quando das folgas da Universidade para a folia gratuita que nenhum outro lugar a ele ofertava. O aroma e o sabor daquilo levavam as meninas à bebedeira além da conta.
O “Engana Moça”, versão da rapaziada para o licor em questão, fazia jus ao vigor dos canaviais que Dom Pedro II conheceu, um dia depois do Natal de 1859, quando de sua visita e pernoite na pequena Pilar, a terra de onde veio ao mundo um dos mais aclamados romancistas brasileiros. Razão da visita imperial? Certamente, a zona canavieira e a produção do açúcar inscrito, juntamente com o café, na pauta das exportações nacionais como produtos de maior peso. Isso mesmo: café e açúcar brasileiros para o resto do mundo.
Já casado, eu costumava visitar Dona Montinha a caminho de O NORTE, por mim editado durante dez anos. Ela então morava com um dos filhos e duas moças trazidas para a Rua Afonso Campos, em João Pessoa, exatamente por trás do jornal pertencente ao grupo dos Diários e Emissoras Associados, criação do paraibano Assis Chateaubriand. Chorava, quase sempre, quando nossa conversa se encaminhava para seu bom tempo de dona de engenho. Lembro que não me permitia deixar sua casa sem um cafezinho e uma fatia de bolo. Para não agravar suas saudades, jamais mencionei, nesses nossos reencontros, a falta dos seus licores.
Tenho que dizer isto: meu único neto saiu ao avô. Prefere, como eu, as coisas da terra que nos viu nascer. Recém-saído de um tobogã de gelo e de volta ao hotel com cardápio italiano, Miguelzinho, do alto dos seus onze anos e ao cabo de cinco dias, perguntou ao garçom que o atendia, para vexame dos pais: “Não tem cuscuz?”. Deus o abençoe.