De repente, o tecido da realidade se alterou, e nos encontrou desprevenidos. A ascensão vertiginosa da Inteligência Artificial (IA) – um caminho sem retorno – toma de assalto as nossas vidas e instala uma era nova para o mundo em que habitamos. Em paralelo, surge no horizonte a Computação Quântica, uma revolução ainda mais grandiosa e que, unida à IA, poderá não apenas gerar ameaças de grande porte mas conduzir a algo bem próximo a uma consciência artificial que desafiaria as fronteiras entre humanidade e máquinas.
Neste exato instante, somos testemunhas e atores do futuro que começa a ser construído.
Estamos no epicentro de uma metamorfose tecnológica que nos apavora e magnetiza. Curiosos e temerosos, agoniados e excitados, contemplamos possibilidades miraculosas enquanto examinamos a própria essência do que é ser consciente e humano. Simultaneamente, tememos a destruição de tudo o que erguemos com talento, graça, engenho e arte. Embora gerada pela moderna ciência, é preciso buscar a velha filosofia para refletir sobre IA, a natureza da mente, o ser consciente e nosso propósito no mundo. Há espaço para os homens de letras no oceano de circuitos de silício. Eis o nosso zeitgeist, o espírito deste tempo em que vivemos, no qual o planeta mergulha em profundas transformações e a tecnologia redesenha o que julgamos conhecer.
Com o avanço da robótica e da IA, nosso cotidiano sofrerá transformações radicais e o futuro poderá ser moldado de maneiras ainda inimagináveis. Profissões e práticas atuais vão desaparecer; outras vão surgir. Dezenas de atividades serão impactadas Por causa da IA, nos próximos cinco anos tudo terá mudado na forma como usamos computadores, afirma Bill Gates .
Talvez a mais poderosa e preocupante mudança venha da convergência de Inteligência Artificial e a emergente Computação Quântica. Esta é um salto tecnológico que traz grandes riscos: supercomputadores capazes de processar informações de maneira tão rápida e eficiente que fariam os mais potentes computadores atuais parecerem lentos. A tecnologia ainda está na infância, mas desperta entusiasmo e sérias apreensões.
A união de IA e Computação Quântica não significa apenas uma avassaladora transformação tecnológica, mas uma redefinição do que significa ser humano. Uma das mais inquietantes possibilidades é que leve a se concretizar a Inteligência Artificial Geral, um agente inteligente que poderia aprender a realizar qualquer tarefa intelectual humana, ou ao surgimento da Consciência Artificial, na qual entidades cibernéticas compartilhariam, em algum nível, uma experiência consciente. A essa altura é inevitável pensar em Martin Heidegger refletindo sobre a tecnologia se desenvolvendo além do controle dos homens.
Enxergo traços do “enquadramento” heideggeriano quando medito sobre algoritmos moldando a nossa compreensão do mundo e nos empurrando em direção a bolhas políticas e produtos. Também penso nas palavras dele quando reflito sobre as medidas que, a título de facilitarem o nosso cotidiano, na verdade reduzem nossa autonomia e privacidade. Pergunto-me se a automatização de tarefas humanas e a possibilidade de as máquinas assumirem o nosso lugar na tomada de decisões não aprofundaria a alienação de nossa essência, distanciando-nos de valores e atividades que amamos, roubando-nos o propósito da vida.
Na aurora deste novo tempo, as incertezas nos esmagam, e hipóteses – absurdas umas, sensatas outras – nos tomam. Onde iremos emergir nesse buraco de minhoca que agora se abre no cosmos em que flutuam nossas vidas pequeninas? Como reagirá a plasticidade do nosso cérebro que aos poucos se virá privado dos estímulos que o impulsionaram em direção às grandes descobertas?
Enquanto os chatbots se tornam mais fluentes, acomodamo-nos em textos cada vez mais curtos, exaustos pela avalanche de informações que invadem nosso cotidiano via redes sociais. Emojis e memes substituem a escrita sofisticada e a leitura longa. Nosso pensamento se excita por causa de futilidades de tik-tok enquanto nossa mente, paradoxalmente, se acomoda, e a memória se consome. A realidade se torna fluida, as versões alternativas e deepfake se multiplicam. O que os olhos veem pode não ser a realidade. Somos novos Pilatos, chamados a julgar algo que desconhecemos, perguntando atordoados: “O que é a verdade?”. Ninguém nos responde.
Nesse turbilhão, algo me inquieta sobremaneira: o conhecimento – chave para a verdadeira liberdade e poder – voltará a ser tesouro sob a guarda de poucos?
Basta um comando ou a falta dele, e a sabedoria virtual evapora. O que nos restará se um dia acontecer?
Talvez parte de nossa instintiva resistência se deva menos a temer mudanças radicais e mais ao fato de que, ao examinarmos a IA, encontramos o espelho. À medida que as máquinas começam a aprender, adaptar e, de certa forma, compreender a experiência humana, sentimo-nos ameaçados. Até então, sobre a Terra, éramos únicos, os protagonistas. Apenas humanos tinham a capacidade de pensar, traduzir emoções, investigar fenômenos, criar ou copiar arte.
Por outro lado, tememos a nossa criatura, pois somos criadores imperfeitos. Para grandes mudanças, queremos segurança e solidez, mas nos deparamos com a nossa moral claudicante a servir como molde. Tecnologicamente avançados, moralmente defeituosos – fórmula perfeita para o caos.
Enquanto as camadas de código se acumulam nos servidores, sentimos a tensão do momento histórico. Não é hora de negacionismos nem de paixões cegas. É necessário conhecer, examinar e refletir sobre o que atinge diretamente. A IA não é apenas um evento tecnológico, mas um chamado a explorar o vasto território da inteligência e da mente; um convite a nos debruçarmos sobre nós mesmos e a nossa natureza profunda – um desafio tradicionalmente conhecido por ser intimidador. Coragem, portanto.