Quando nasci (em 41), o Super-Homem de 38 ) e o Capitão Márvel (39) tinham acabado de ser criados. Minha infância foi tomada pelo deslumbramento ante esses e outros heróis de dupla identidade. O tímido e atrapalhado jornalista Clark Kent, em cada situação de emergência tirava o chapéu, os óculos e a roupa convencional numa cabine telefônica, e dali se mandava voando, e - de aço, como era o Superman -, pronto pro que desse e viesse. Cada vez que o inviável pequeno radialista Billy Batson se via em perigo, ou alguém estava em vias de ser atacado, perto dele, gritava Shazam, um raio irrompia do céu sem nuvens - e ele se transformava no Capitão Márvel, que - além de alto, forte e invulnerável, ... também voava.
E no far west? Toda vez que o pacífico Dr. Robledo via a coisa preta, tal como Clark Kent ele tirava os óculos, o terno, vestia-se de negro, lenço negro no rosto, e virava Durango Kid, exatamente como o afeminado e rico Don Diego de la Vega se transformava em... Zorro, paladino dos pobres, exatamente como o milionário Bruce Wayne fazia ao se transformar em Batman.
Fascinado, construí, no matagal que havia diante de minha casa – em minha infância, lá em Sorocaba, SP, na Rua Oswaldo Sampaio, Bairro de Santa Terezinha - uma espécie de bat-caverna, algo que – não sei porque (já vasculhei, inutilmente, nos dicionários) eu chamava de “mineia” (com antigo e eficiente acento agudo no é). Lá estavam minha máscara, além do arco e de uma aljava cheia de flechas com que eu poderia atacar os imaginários marginais que estariam assolando o bairro.
Enquanto cresci, vi outros homens e mulheres de dupla identidade. Deslumbrei-me quando pela primeira vez vi dançarem juntos... Frederick Austerlitz e Virginia Khaterine McMath – Fred Astaire e Ginger Rogers -, algo tão estranho de ver fora da fantasia quanto, depois, ouvir pela primeira vez falar do casal americano perfeito: William Jefferson Blythe IV e Hillary Rodham – Bill e Hillary Clinton. E o nome de Lênin? Vladimir Ilyitch Ulianov – talvez porque “Vladimir” signifique “senhor do mundo” e “ulianov” – “vermelho”. Trótsky era Lev Davidovich ( Leão, Filho de Davi ) Bronstein. Stálin - Iosif Vissarionovich Djugatchvili. Ho Chi-Mihn, Nguyễn Sinh Cung.
Trocam-se nomes como cobras trocam peles.
Quando Doménikos Theotokópoulos fixou residência na Espanha, passou a ser El Greco. Quando o francês Charles Romuald Gardés tornou-se o grande cantor argentino de tangos, tornou-se Carlos Gardel. Quando a portuguesa Maria do Carmo Miranda da Cunha tornou-se a grande cantora brasileira de samba, virou Carmem Miranda. Quando Cassius Marcellus Clay Jr se converteu ao islamismo, mudou seu nome pra Muhammad Ali-Haj.
Carlos Gardel - Carmen Miranda - El Greco CC0
Assim, o cardeal Karol Józef Wojtyła passou a ser João Paulo II; Angelo Giuseppe Roncalli, João XXII; Joseph Alois Ratzinger, Bento XVI;
Jorge Mario Bergoglio, Papa Francisco. O mesmo se deu com noviças quando passaram a freiras, como Agnes Gonxha Bojaxhiu tornou-se Madre Tereza de Calcutá e Maria Rita de Souza Brito Lopes Pontes, Irmã Dulce.
Fernando Pessoa – tendo em vista as várias personalidades poéticas que assumia – assinava ora como Alberto Caeiro, Ricardo Reis ou Álvaro de Campos, seus famosos heterônimos.
Vários outros escritores assinaram com nomes que não eram seus. Voltaire era François Marie Arouet. Molière era Jean-Baptiste Poquelin. Pablo Neruda era Ricardo Eliecer Neftalí Reyes Basoalto. Maximo Górki era Aleksei Maximovich Peshkov. George Orwell era Eric Arthur Blair. Averroes era Abul Walid Muhammed Ibn Ruchd. Alberto Moravia era Alberto Pincherle. Anatole France era Jacques-Anatole-François Thibault. André Maurois era Émile Salomon Herzog. Stendhal era Marie-Henri Beyle.
Todo mundo sabe que Marilyn Monroe era, na verdade, Norma Jean. Mas você conheceu ... Marion Michael Morrison? Era o John Wayne. Sabe quem é o ... Allen Stewart Konigsberg?: Woody Allen. Caryn Elaine Johnson?: Whoopy Goldberg. Sabe quem era ... Edda Kathleen van Heemstra Hepburn-Ruston?: Audrey Hepburn. Issur Danielovitch Demsky?: Kirk Douglas. Frances Ethel Gumm?: Judy Garland. Camille Javal?: Brigitte Bardot. Fred Mercury era ... Farookh Pluto Bulsara! Elton John é ... Reginald Kenneth Dwight!
O nome, na verdade, faz diferença. Quantos judeus mudaram de nome pra escapar da Inquisição e do nazismo! Quantos nazistas fizeram o mesmo, no final da Segunda Guerra Mundial, pra se livrar de Nuremberg! Adolf Eichmann entregou-se a soldados americanos dizendo-se o cabo Adolf Barth, da Luftwaffe. Cada vez que era transferido de campo de prisioneiros, adotava um nome diferente. Acabou livre como Otto Heninger. Mas foi descoberto em 1960, quando se dizia Ricardo Klement, que trabalhava numa fábrica da Mercedes-Benz. Dilma Roussef, quando fazia parte da organização clandestina VAR-Palmares, usou os nomes de Estela, Luísa, Maria Lúcia, Marina, Patrícia e Wanda. José Dirceu retornou de Cuba em 1975, aparência alterada por uma operação plástica, passaporte com nome de Carlos Henrique Gouveia de Mello.
Veja um trecho da cena do balcão, de Romeu e Julieta, ato II, cena II:
Julieta:
Só o teu nome é meu inimigo. (...) O que há num nome? O que chamamos de rosa teria o mesmo perfume como quer que a chamássemos…
Bem, mas até o deus dos judeus teve identidade secreta. Ou várias. Ele só disse o seu nome quando se apresentou a Moisés, ao lhe falar de dentro da sarça ardente:
- Yahveh!
Ressoa-me na memória sua voz imponente, em Os Dez Mandamentos de Cecil B. DeMille:
- I am who I am! - Eu sou quem eu sou!
Mas os judeus, a partir do século III a.C, entenderam que, no livro do Êxodo, Yahveh (Javé ou Jeová) dissera que não se deveria usar seu santo nome em vão. Passaram a chamá-lo de Adonay, que significa “Senhor”. Daí que, ao fazerem a tradução das Escrituras para o grego, Yahveh passou a ser “Kyrios”. Quando elas foram passadas para o latim, “Dominus”. Para o inglês, “Lord”.
Quantas vezes, quando menino, rezei usando a expressão helênica:
- Kyrie eleison. Senhor, tende piedade de nós.
E, ao ver o padre entoar em latim, voltando-se para nós…
- Dominus vobiscum!. O Senhor esteja convosco!... ... lembro-me de que eu respondia com todos os outros: - Et cum spiritu tuo!... E com teu espírito!... Como os únicos que podiam e sabiam pronunciar exatamente o tetragrama YHWH (יהוה) – Yahveh - eram os sacerdotes, no Templo, e como no ano 70 d.C o Templo foi destruído pelos romanos, esse nome – como ele realmente era – se perdeu. E em lugar de Adonay (Kyrios, Dominus, Lord, Senhor) passou-se, de uns tempos para cá, a se usar a palavra Hashem, que significa “O Nome”. Pura e simplesmente, o que remeteu sua identidade ao inextricável segredo que ela pedia.