Lá pelas bandas onde nasci e me criei, Vale do Paraíba, interior de São Paulo, garapa é simplesmente caldo de cana. Já em nossas lati...

Garapa

cidade interior nordeste
Lá pelas bandas onde nasci e me criei, Vale do Paraíba, interior de São Paulo, garapa é simplesmente caldo de cana. Já em nossas latitudes, um copo de garapa é uma mistura de água com açúcar. Dizem os daqui que essa combinação serve para acalmar quem está com os nervos à flor da pele, reiteram que se trata de uma mezinha de muita eficácia nessas situações.

Outra consideração, antes de entrar propriamente no causo, versa sobre cidades de nosso interior, dessas com menos de 100 mil habitantes, não mais que isso. Pois, essas localidades se elevam ao patamar da respeitabilidade se abrigarem dentre
seus cidadãos ao menos um doido, um louco. Não um doidivanas meia boca, recluso, mas um louco raiz, louco de carteirinha, desses que toda a comunidade conhece. Cidade que não tem seu maluco investido de notória popularidade, não é uma cidade de respeito. Nem devia receber verbas do governo federal. Cidade assim não merece atenção, nem merece estar no mapa. Agora o causo.

Numa respeitável localidade aqui nas quenturas do semiárido, viviam umas vinte mil almas, gente temente a Deus, muito devota. Como dizem que a fé remove montanhas, Ele nunca faltou com essa população e todo dia de São José, chegando nos idos de março, mandava chuva farta para garantir bom inverno e colheita farta.

Essa cidadezinha merecia essas bênçãos do Criador pela fé e devoção dos seus moradores; e, também o respeito desse escrevinhador e todas as gentes que por lá passavam por um motivo muito especial: a cidade tinha seu louco, chamava-se Garapa! Sim, Severino Mendonça de Figueiredo e Silva com esse nome de usineiro com mais de 100 alqueires de cana plantada se tornou conhecido tão somente pela acunha de Garapa. Um louco, mas um doido qualificado.

Garapa era muito popular, andava sempre num terno de linho branco, gravata borboleta, com sua pasta 007. Nela, um canivete de pressão (aqueles em que você aperta um apêndice e a lâmina pontuda aparece), recortes de jornais e de revistas, mais uma maçaroca de papéis, onde com sua letra quase indecifrável rabiscara uns sonetos de péssima qualidade. Como é de se supor, Garapa era homem de algumas letras, tinha teto e família para provê-lo das necessidades mais urgentes. Gostava de frequentar missas e comícios, mais os palanque do que os adros. Era “habitué” do bar de Chiquinho Tanajura, onde meia dúzia de criaturas, a fina flor da intelectualidade local, se reunia nos finais de tarde para molhar a palavra e esticar aquela prosa que sai do nada e chega a lugar nenhum. Garapa se sentia um deles e não perdia essas tertúlias e,
mais do que tolerado, os pretensos intelectuais divertiam-se com a presença dele.

O problema residia no fato de que o nosso Severino odiava que o chamassem pelo apodo. Fazia questão do Severino e de gente mais nova do que ele não abria mão do “Seu” precedendo ao nome. Ah, se visse e ouvisse alguém o tratando pelo apelido. O que fazia? Atirava pedras e o alvo era a cabeça do atrevido.

Mas a garotada não perdoava. Quando nosso maluco-beleza desfilava todo pimpão por algum canto da cidade e se ali o vissem, a gurizada não perdia a oportunidade:

⏤ Ga-ra-pa! ⏤ e lá ia nosso doidivanas acionar sua artilharia e tome pedra nos malcriados.

Até que um dia Garapa acertou o alvo. Estava chegando ao botequim do Chiquinho Tanajura, quando dois pirralhos, desceram da bicicleta e resolveram provocar nosso vate de boteco:

⏤ Garapa! Garapa! Gaaaaaaraaaaapa!

Severino se municiou do primeiro pedregulho que achou. Fez a pontaria e não deu outra, Bem na testa de um dos garotos. Jorrou sangue, o menino deu dois passos e desmaiou. A galera do botequim prestou socorro. Nada grave. Uns pontos na testa e a lição de que aquele atrevimento não valia a pena. Severino teve que prestar depoimento na delegacia, mas na oitiva reiterou que não iria tolerar provocações. Delegado e escrivão não levaram muito a sério aquela ameaça e dispensaram o depoente.

O fato aguçou o lado obscuro da alma dessa meninada que gosta dessas provocações. De uns marmanjos também. A turma do boteco de Chiquinho Tanajura nem se fale.
Daí, quase uma tragédia.

Uma bela tarde, a tropinha já se fazia presente no botequim em questão quando Severino aparece. Meteu-se na conversa. A pauta era “parnasianismo”, quando Garapa pediu para ler um soneto que escrevera, ou melhor, que cometera.

⏤ É um alexandrino ⏤ esclareceu abrindo a pasta para procurar o fruto de sua lavra.

Barbosa, um dos presentes, todo cheio das más intenções, pediu um momento a Severino e chamou pelo dono do botequim com um pedido:

⏤ Chiquinho, me traz um copo d'água ⏤ era de se estranhar, água?

Um outro presente, o Marques, deu continuidade ao chiste:

⏤ Aproveita Chiquinho e me traz uma colher de açúcar.

Severino entendeu a troça, ficou vermelho de raiva. Aproveitou que a pasta estava aberta, pegou o canivete, acionou a lâmina, todo cheio de macheza, olhou para o Barbosa, para o Marques e fez o desafio:

⏤ Só quero ver quem vai ser macho para misturar.

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