Trimmmm, trimmmm, trimmmmm... ⏤ Alô! ⏤ surpreso. ⏤ Quem fala? ⏤ Quer falar com quem? ⏤ ainda espantado. ⏤ Com Felipe... Felipe?

Carlos

conto solidao rejeicao
Trimmmm, trimmmm, trimmmmm...


Tooo tooo toooo...

⏤ ... o seu!? ⏤ desiludido.

Apresento-lhe Carlos. Com seus trinta e cinco anos, ele é um homem de feições até bonitas. Um metro e oitenta, bastos cabelos castanhos, olhos escuros, firmes e penetrantes, rosto harmonioso... tem lá o seu charme; de inteligência mediana, consegue com desenvoltura participar das mais variadas conversas, apesar de ter preferência das que tratam de desventuras amorosas; profissional competente, ele trabalha numa repartição pública das 13 às 18h.

Seu apartamento é um primor, parece um daqueles que vemos na Casa & Construção. Mobiliado com bom-gosto, tem tudo para receber amigos: um bar, com toda sorte de bebidas — vinhos italianos e franceses, uísque, o mais legítimo escocês, e até tequila vinda de Guadalajara; sofás confortáveis em “L”, como nos filmes — ele exigiu; home teather e vários DVDs com os últimos lançamentos; uma pequena biblioteca que faria feliz o mais exigente literato. Música? Ali você encontra desde a coleção de Pixinguinha, passando por toda obra de Mozart e Beatles, até MC Serginho e Marilando e Mariosvaldo, dupla revelação da música sertaneja em Botucatu. “Sabe-se lá o gosto musical da visita, não é?”. Ele mesmo não ouve muita coisa; não que não goste de música, mas é que o barulho pode impedi-lo de ouvir o eventual toque de seus aparelhos de telefone — um fixo e dois celulares, e ele está pensando em comprar um aparelho de bip, também.

Ah! E como ele fica ansioso pelo toque do telefone. Assiste à sua novela das oito com o som bem baixinho, na expectativa de uma ligação. Mas não recebe ligações, Carlos; a não ser por engano. Visita mesmo, só aquela há dois meses, quando seu decorador, Benício Lara Cardoso Segundo — o mais requisitado da cidade –, foi opinar sobre a mudança de alguns móveis para modernizar o ambiente, o que lhe custou os “olhos da cara”. Claro, tem o entregador de água, Cícero, com quem ele quinzenalmente trata, quando faz o pedido da mineral. Permita-se desconsiderá-lo, não por sua nobre função de matar a sede da população, mas porque a sua visita restringe-se apenas na colocação do recipiente em cima da mesa da cozinha.


“Estranho, ela não tem filhos. Como levá-los ao médico? Sobrinhos, só pode ser”. “Dentista numa sexta-feira à noite não é coisa comum, mas vá lá, o mundo anda tão corrido”. “Relatório!? Chefe!?
Ora, mas ele é meu subordinado! Não lembro de ter-lhe pedido nenhum relatório. Essa minha cabeça, sempre esquecendo das coisas!”. Mas Carlos não arrefece, depois do trabalho vai para a noite. Às vezes até encontra o pessoal tomando um chope. “Vai ver que resolveram o que tinham para resolver e por coincidência se encontraram na rua”, conforma-se. Após quatro refrigerantes, um prato com salame, queijo de minas, azeitonas pretas e a velha conversa no balcão com Cláudio, o barman, sobre o clima e as duas morenas do outro lado do bar, ele vai pra casa, deita e fica pensando como a noite foi agradável, afinal aquele senhor lhe havia perguntado se tinha “fogo”; logo a ele, um antitabagista ferrenho. “Amanhã vou comprar um isqueiro”, pensa, antes de adormecer.

Carlos está em todas, mas... mas sempre só, o pobre Carlos. Quatro colegas dividem a sala onde trabalha, setenta e dois o prédio, circulam na repartição três mil pessoas diariamente, no bairro são oitenta e dois mil apressados correndo pra cima e pra baixo, na sua cidade, de acordo com o último censo, vivem dois milhões de almas. Apesar disso, Carlos é um homem solitário. Não que ele goste da situação, pelo contrário, como foi mostrado alhures, faz de tudo para fugir dela; sequer aceita como real essa sua condição..

Este narrador não sabe o motivo de Carlos não ser bom no convívio social, se era o que o leitor pretendia saber, tampouco tal fato me interessa, mesmo porque as relações entre os seres humanos são deveras complicadas e não se conheço a fundo os detalhes do espírito do nosso protagonista para deter-me nas razões dessa sua dificuldade para inserir-se na vida coletiva. Esta pequena narrativa não tem maiores pretensões além de mostrar como o solitário Carlos não se resigna com a sua condição. É uma solidão por entre a gente, como diria o poeta português, pois Carlos insiste em estar rodeado de pessoas, mesmo que não as conheça. Na academia mais badalada da cidade vai duas vezes por semana; estuda francês, alemão e pretende inscrever-se num curso intensivo de sânscrito; é filiado a um partido político e faz parte do conselho do condomínio só para participar das reuniões..

Dirá o leitor que este narrador experimenta algo de mórbido ao contar esta história, zombando da vida de uma pessoa que, além de ter que amargurar as vicissitudes da pior das solidões, aquela em que não se está sozinho, ainda tem que se ver exposto para os leitores deste conto, mesmo que sejam apenas dois ou três. Ora, se a simplória vida de nosso Carlos não lhe confere brilho entre seus pares, que o façamos através dessa história. Se Carlos viesse a tomar conhecimento dessa narrativa, provavelmente a apoiaria, e creio que até financiaria sua publicação em edição capa-dura de luxo, pois o ser humano necessita que seu semelhante perceba sua existência;
e talvez estas poucas linhas sejam a única forma de Carlos mostrar-se para o mundo. Voltemos ao nosso herói, então..

Sábado é dia de baixa audiência na TV e não é Carlos quem irá ajudar às emissoras. Sempre bem vestido — as melhores lojas têm seu número para quando chegarem novidades —, parte em sua moto “750 cilindradas”. Ele tem carro, mas fim-de-semana é pra moto, como ele leu numa revista masculina, o que o fez apertar-se nos juros do financiamento da sua “máquina”. Vento no rosto, luvas de couro, vai para a zona de burburinho; ingresso para a boate mais cara, onde ele finalmente mostra o quanto valeu a pena investir naquela escola de dança e na coleção “Aprendendo, em Cinco Dias, a Dançar como Travolta em Embalos de Sábado à Noite”, que lhe torrou o 13º do ano passado. E essa tem sido a expiação de Carlos: ser solitário sem ser sozinho.

Domingo: Carlos chega do parque. Aproveitou aquela tarde de primavera para fazer um piquenique em meio ao verde e ao canto dos pássaros. Para quem estou mentindo, ele foi ao parque para ver toda aquela gente se divertindo. Como é comum no crepúsculo daqueles dias, a tristeza arrebata o seu coração. Mas eis que o inesperado acontece:

Trimmmm, trimmmm, trimmmmm...


Toooooo, toooooo, toooooo...

⏤ ...o seu?

Assim mesmo, impetuoso, desligou o celular, esquecendo-se da boa educação e do cavalheirismo que sempre o acompanhou. “Onde já se viu: ‘ligar aleatoriamente’! Vê se eu tenho cara de quem fica consolando solitário no meio da noite. Eu tenho mais o que fazer, ora essa”, pensou Carlos, esperançoso, antes de dormir.

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  1. Anônimo1/4/24 08:06

    Muito bom 👏👏👏👏👏👏👏❤️❤️❤️❤️❤️❤️❤️❤️🪡✂️🧵,quando se sentir sozinho ligar que vou correndo ao seu encontro 😘😘😘😘😘😘😘😘

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