Continuação do artigo Agruras de um consultor na terra dos Incas (Parte 1): Chegada ao Peru.
Início da consultoria no Peru
Na segunda-feira pela manhã, após minha chegada em Chimbote, no dia anterior, tomei um táxi e fui ao escritório da empresa. Em lá chegando fui apresentado a alguns consultores e um deles me respondeu em perfeito português. Era o economista Miguel Castro. Morara seis meses em Fortaleza, CE, dominava bem o idioma de Luís de Camões. Disse-me que havia vindo a Chimbote para selecionar um hotel para o grupo e que eu deveria me mudar imediatamente para a pensão que ele havia escolhido, chamada Hostal Bolognesi. Ficava na rua do mesmo nome,
em homenagem a Francisco Bolognesi Cervantes, um militar peruano que participou da Guerra do Pacífico, conflito ocorrido entre 1879 e 1883, confrontando o Chile com as forças conjuntas da Bolívia e do Peru.
No final da guerra, o Chile anexou áreas ricas em recursos naturais de ambos os países derrotados. O Peru perdeu as províncias de Arica e Tarapacá, pelos tratados de Ancón e Lima. É nestas áreas onde estão localizadas atualmente, as melhores vinícolas do Chile, por exemplo, a vinícola Tarapacá, cujos vinhos são muito conhecidos pelos brasileiros.
Com o título de coronel, Bolognesi defendeu o porto peruano de Chimbote desde a cidade de Arica, enfrentando os chilenos, muito superiores em número e poderio bélico. Seu lema era “Lutar até queimar o último cartucho”. Sucumbiu heroicamente durante a batalha final e é considerado herói nacional no Peru. Nesse curto período, os chilenos cunharam em 1879 suas moedas de cinco, dez e vinte centavos, testemunhas históricas da Guerra do Pacífico.
Essa pequena pensão era modesta, simples e muito limpa, porém não oferecia café da manhã. Miguel Castro, que possuía um gênio muito forte, praticamente obrigou o amável proprietário a incluir e a cobrar esse serviço na diária do hotel. Por esse motivo nós o apelidamos de “Coordinador de Desayunos”. A partir daí, realmente, a qualidade de vida só melhorou. A única coisa de que não gostei foi ter de tomar água mineral com gás diariamente por questões de segurança alimentar. Além de ser obrigado a sentir durante 24 horas por dia o horrível mau cheiro exalado pela industrialização da farinha de peixe processada pelas diversas firmas estrangeiras.
Durante todo o período em que estivemos em Chimbote, almoçávamos diariamente no restaurante Venecia. Um dia ali apareceu Fujimori (Alberto Kenya), ex-presidente do Peru, período de 1990 a 2000, distribuindo santinhos, em plena campanha eleitoral. Considero a cozinha peruana espetacular, mas, ainda mais naquela cidade, dada a enorme disponibilidade de frutos do mar, fresquíssimos. Comida, aliás, sempre muito picante, para quem não é acostumado a temperos mais fortes. Lembro de um prato chamado “Lomo con Tacu Tacu”, um dos pratos preferidos do nosso companheiro Miguel Castro. Consistia em um pedaço de filé e arroz misturado com feijão. Também gostei, porém, vinha sempre um pedaço muito pequeno de filé e a porção de feijão e arroz muito grande. Por isso, sempre pedia, por gozação, “Tacu con Lomo Lomo”, para ver se conseguia um pedaço maior de filé.
Havia pequeno supermercado em Chimbote com poucas mercadorias, porém, todas de alta qualidade, pois eram produtos destinados praticamente a industriais estrangeiros de grande poder aquisitivo, principalmente os exportadores de farinha de peixe. Nele havia um mini-restaurante chamado Astoria, que só abria à noite, e possuía cerca de meia dúzia de mesas destinadas a tais comerciantes. Vez por outra íamos jantar por lá e tomar algumas cervejas. Logo que começamos a frequentar esse restaurante, a cozinheira logo notou que eu não era peruano, aproximou-se de nossa mesa e começou a conversar. Contou que a situação do seu país era muito ruim, havia trabalhado como secretária, sabia bastante informática e estava nessa profissão devido a essas circunstâncias adversas. Perguntou-me se não queria trazê-la para o Brasil para montarmos um restaurante peruano. Como muita gente sabe, os peruanos são excelentes cozinheiros. Expliquei que não era comerciante nem possuía recursos suficientes para montar um restaurante, não havendo possibilidade de realizar o seu desejo. Em outra ocasião, chegou uma comitiva de diretores da firma para verificar o andamento dos nossos trabalhos. Levamos o pessoal para jantar nesse restaurante. Qual não foi a sua surpresa ao perceberem que o meu prato se diferenciava escandalosamente de todos os demais. A cozinheira peruana ainda mantinha esperança de que a trouxesse para o Brasil.
Tinha, na bagagem, o dicionário de conjugação de verbos em espanhol Larousse Conjugación, de Ramón García-Pelayo; o dicionário Harrap’s Concise Dictionary Espanhol/Inglês e Inglês/Espanhol e outro mais, americano (inglês/inglês), com bem mais palavras. Meu conhecimento de espanhol era, na época, muito sucinto. Ao final das tardes, após o trabalho, ia para o hotel e, depois de jantar, caminhava um pouco. Depois, recolhia-me ao quarto e assistia a apenas um canal de televisão que ali existia, com sinal péssimo, onde assistia a filmes americanos dublados para o espanhol no intuito de melhorar o entendimento do idioma de Cervantes. No dia em que comecei a redigir o meu relatório, era grande a dificuldade que tinha. Nunca havia escrito em espanhol. Para se formar uma frase é necessária a inclusão de algum verbo e que o mesmo tenha algum tipo de conjugação. Para saber o significado das palavras que não conhecia em espanhol utilizava o dicionário inglês/inglês devido ao meu bem maior conhecimento deste idioma. O dicionário de conjugação Larousse, que levava comigo, me ajudou muito e também tive o prestimoso apoio de Miguel Castro. Pouco a pouco fui melhorando e, ao final, escrevi um relatório de pouco mais de 200 páginas, também auxiliado pelas secretárias peruanas.
Como não tínhamos nada a fazer em finais de semana, geralmente cuidávamos de adiantar o trabalho. Nosso grupo estava encarregado de realizar o diagnóstico das empresas municipais de água e esgoto das cidades de Chimbote, Piura e Tumbes. A algaroba que existe hoje, principalmente no Nordeste brasileiro, foi trazida originalmente da cidade de Piura. O mel de algaroba ou algarobina é comercializado em qualquer supermercado do Peru. É extraído das sementes de algaroba e utilizado para uso em sorvetes e licores de pisco (aguardente de uva, bebida tradicional peruana) de sabor muito semelhante ao do chocolate. Descobri nessa época que era possível fazer um licor muito saboroso utilizando vodka e mel de algaroba. Infelizmente, é bem difícil a aquisição desse produto no Brasil.
Não tendo havido tempo suficiente, só trabalhei nas duas primeiras cidades. Em algumas das folgas que tive, visitei a cidade de Trujillo, onde nascera o meu coordenador Augusto Hidalgo, o qual também me levou a conhecer sua casa e família. Cidade muito famosa, também, por sua dança Marinera.
A dança, no Peru, existe desde tempos imemoriais. Os anciãos escolheram a dança como forma de render homenagem às suas divindades, de comemorar uma boa colheita ou uma boa notícia. Nas montanhas, as danças são muito coloridas e cheias de vigor. O bater constante dos pés, o sapateado e as coreografias transmitem vitalidade e alegria. As danças dos rituais exigem anos de prática para poder realizar saltos acrobáticos ao ritmo da harpa e do violão. A Marinera é uma dança romântica, elegante e graciosa, na qual os dançarinos – uma mulher e um homem – representam uma peça de amor e sedução; é caracterizada pelo uso de lenços, agitados pelas mulheres. Apesar de ser característica do litoral do país, se expandiu por todo ele, variando de um lugar para outro tanto por seus costumes como por suas coreografias, conservando, no entanto, a sua essência, que é a corte feita por um homem a uma mulher.
A cidade de Trujillo é considerada a capital da Marinera. Lá acontece, anualmente, uma competição nacional dessa dança, em festa a de cores e beleza sem igual, onde chegam casais de diferentes cidades do país para competir em diversas categorias. Durante o festival, a estrutura da coreografia surge mais complicada; o cajón e a guitarra se veem substituídos por tambores e cornetas das bandas de música.
Também visitei, na companhia de Augusto Hidalgo, o sítio arqueológico Chan Chan que é patrimônio mundial da humanidade desde 1986, também localizado bem-próximo a Trujillo. Um reino poderoso, com estrutura hierárquica definida e uma cidade perfeitamente planejada, abrigando cerca de 50.000 habitantes. Assim era Chan Chan, construída entre os séculos X e XV, quando foi dominada pelos Incas por volta de 1470, hoje um dos mais preciosos sítios arqueológicos do mundo.
Sítio arqueológio Chan Chan, Trujillo, PeruB. Murch
Somente mãos habilidosas poderiam erguer uma cidade de barro como a de Chan Chan, que fica na costa norte do Peru. Chan Chan foi a capital do Reino de Chimu, um dos mais poderosos da América do Sul, embora menos famoso que o Império Inca. Chan Chan possui uma área de 15 quilômetros quadrados onde há ruínas das edificações construídas em adobe, um material preparado com barro, palha e pedregulho, ideal para a região em que se localiza a cidade, quase sem chuvas. Chan Chan significa "Sol Sol". Infelizmente a erosão provocada pela ação do tempo, colocaria o sítio arqueológico na lista dos patrimônios em perigo.Nossas viagens para lugares mais distantes aconteciam em antigos aviões de carreira, em que se entrava apenas pela parte de trás. O mesmo tipo de avião quando assistíamos filmes de guerra. Tinha muito medo dessas viagens. Em meio ao trabalho soube que o governo peruano havia comprado alguns aviões a jato russos modelo 737. Fiquei animado para que as próximas viagens pudessem se realizar nesse transporte mais moderno.
Depois de um trabalho árduo que incluía também a maior parte dos finais de semana, comecei a me estressar. Sugeri ao meu coordenador Augusto Hidalgo que solicitasse uma folga de três dias ao diretor alemão, possibilitando que eu e ele pudéssemos passar um fim de semana em Lima. Obtida a autorização, segui com ele num daqueles aviões antigos, no propósito de alcançar algum divertimento em Lima. Ficamos hospedados num hotel para estudantes, daqueles bem econômicos. Augusto gostava de escutar rádio e logo que o ligou escutamos entrevista com um famoso psicólogo peruano que dizia: “É mais fácil morrer pela mulher que amas, que viver com ela”. Não deixa de ser uma grande verdade. Fomos assistir a um show de uma cantora peruana famosa, tendo ficado estupefato com o preço do ingresso: US$ 100. Isso, em 1994.
No regresso a Chimbote, Hidalgo optou por rever primeiro a família e seguiu diretamente para Trujillo. Esperei toda uma manhã até que chegasse o momento de tomar o avião. De repente, a notícia: na estreia do seu primeiro voo, o avião russo, o Boeing 737 sofrera um acidente fatal. O avião havia se chocado com uma das montanhas do Peru. Fiquei tão surpreso e emocionado pensando que poderia ter estado entre os passageiros, que desisti de voltar de avião. Perdi o bilhete aéreo e comprei uma passagem de ônibus para o regresso a Chimbote. Talvez, risco ainda maior, pois a incidência de desastres nas estradas peruanas era enorme. Graças a Deus cheguei são e salvo a meu destino.
Comparecia ao escritório na hora certa, invariavelmente. Intrigava-me que o primeiro a chegar, antes de mim, como de costume, fosse o engenheiro peruano Gonzalo Herrera, uns oito anos mais novo. Muito simpático, mas de pouca conversa com a gente, e que, rotineiramente, lia um romance. Após minha volta ao Brasil, Augusto Hidalgo me contou que a firma Saniplan, para a qual trabalháramos, recebera uma multa pelo atraso, justamente em razão do relatório de Gonzalo Herrera não ter sido entregue. Adoecera pelo estresse de não terminar o trabalho a tempo e se achava hospitalizado. Suponho que não teve tempo de concluir seu trabalho devido a tanto tempo perdido lendo romances.
Outro consultor, José Portillo, especialista em informática, deveria permanecer em Chimbote por mais dois ou três dias, a fim de compilar informação da empresa Sedachimbote (Empresa de Saneamento de Chimbote). Só esteve duas ou três horas, tempo suficiente para decifrar a criptografia do computador do chefe de sistemas, obviamente com o consentimento do gerente geral da empresa. Portillo era sempre rodiziado entre as três empresas do grupo e fora muito poucas vezes a Chimbote. Trabalhou muito mal e tampouco apresentou qualquer relatório do seu trabalho, que veio a ser elaborado, naturalmente com atraso, por Augusto Hidalgo. A Saniplan veio a ser contemplada com nova multa por não haver cumprido o cronograma previsto pelo Ministério da Fazenda. Foi, em razão disso, despedido da empresa.
Por ironia do destino, três meses depois de Portillo haver sido demitido, soube posteriormente de sua nomeação pelo Presidente Fujimori, como Chefe Nacional do Organismo Nacional de Processos Eleitorais do Peru (ONPE). Foi gestor dessa organização durante todo o mandato restante de Fujimori, por seis anos. Porém, depois de uma desastrosa administração e de tantas fraudes eleitorais ocorridas durante todo aquele período, quando Fujimori caiu, Portillo foi sentenciado a cinco anos de prisão. Posteriormente, voltou a lecionar na Universidade Nacional do Peru (UNI). Uma vez reincorporado à Universidade, chegou a ser escolhido como o melhor professor do ano. Era mestre extraordinário, contudo, não se ajustara bem como consultor ou mesmo executivo.
Os honorários mensais dos consultores peruanos eram de U$ 2,000.00 (dois mil dólares americanos), além das diárias pagas em soles peruanos referentes ao pagamento de hotel e alimentação. A mim me cabiam, porquanto estrangeiro, U$ 5,000.00 (cinco mil dólares mensais) mais respectivas diárias. Depois de certo tempo de trabalho, descobri que o salário de um funcionário alemão, integrante da equipe de consultores, já bastante idoso, era de doze mil dólares. Sua única tarefa era atualizar diariamente o cronograma de trabalho dos consultores. E meus amigos esquerdistas só se referem ao imperialismo americano! Tínhamos o direito de receber nossos honorários a cada mês, contudo, preferi esperar para o final do trabalho, de modo a não ficar preocupado com a eventualidade de vir a ser roubado.
Fui o primeiro consultor a concluir o trabalho, no prazo de dois meses e meio. Já estava com muita vontade de regressar a João Pessoa. Quando entreguei o relatório ao diretor Schöner, ele mostrou cara de espanto e me pediu para fazer algumas modificações. No dia seguinte voltei a ele com as correções solicitadas e lhe disse que estava contribuindo para a economia da Saniplan, pois estava poupando-a de pagar o equivalente a 15 diárias, já que meu contrato era de três meses.
Viajei para Lima e hospedei-me no Hotel Alemán, localizado na Av. Arequipa, 4704, Miraflores, hotel de três estrelas, ainda hoje em pleno funcionamento. O hotel era superseguro. Para acessá-lo tinha-se de passar por três portas, questões de segurança. Todos os alemães que passavam por Lima ali se hospedavam. Decidi ficar por mais um dia, a fim de melhor programar a volta, organizar e contar o total dos honorários que havia recebido no escritório da firma em Lima. Estava nervoso, receoso de ser roubado, o Peru nessa época estava muito violento. O chefe do Sendero Luminoso, Abimael Guzman, fora condenado por um tribunal civil de Lima, capital do Peru, em 1993, a prisão perpétua por terrorismo, assassinatos e outros crimes cometidos durante a guerrilha maoísta (1980 e 1992) que cobrou a vida de 70 mil pessoas entre 1980 e 2000, dentre eles mais de duzentos engenheiros. Alguns anos antes, uma engenheira paulista, funcionária da Cetesb, que estagiava no centro de pesquisa CEPIS/OPAS/OMS onde eu trabalharia muitos anos depois, em Lima, morreu devido a uma bomba que colocaram debaixo do seu assento, em trem que viajava no trajeto de Cusco para Machu Picchu.
Dia seguinte tomei um táxi para o aeroporto. Mal entrei, o motorista perguntou: “O senhor está nervoso?”. Dá para que se forme ideia de como estava o meu estado psicológico. Pois bem. O aeroporto internacional Jorge Chávez era muito pobre e malconservado. Tive que utilizar o banheiro, que mais parecia com os piores sanitários de beira de estrada que conhecemos. Para completar, meus óculos caíram dentro da bacia sanitária e havia pouca água e nenhum sabonete na pia para lavá-lo. É bom frisar, que atualmente, o aeroporto de Lima é considerado um dos mais modernos da América do Sul.
Finalmente, são e salvo de volta a João Pessoa. Experiência profissional renovada, a enriquecer o currículo. Novas histórias para contar aos amigos, ainda com a sensação de gatos a perseguir-me. Por quinze dias sentindo ainda o enjoado cheiro de farinha de peixe.