Sempre que me refiro à linguagem científica de Augusto dos Anjos, há pessoas que me perguntam sobre a possibilidade de desatualização ...

A atualidade de Augusto dos Anjos

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Sempre que me refiro à linguagem científica de Augusto dos Anjos, há pessoas que me perguntam sobre a possibilidade de desatualização dos termos, considerando a nomenclatura científica moderna e os avanços da ciência. Há, sim, esta possibilidade, mas a minha resposta segue um mantra, afirmando que devemos ver o poeta em sua época. É óbvio que a poesia de Augusto dos Anjos, como toda grande poesia, é universal. A dor do homem, o conflito com o mundo, a angústia diante da degradação moral e material são inquietações que afligem o ser humano em qualquer época e em qualquer lugar. A sua poesia, portanto, transcende os limites do espaço e do tempo. Neste aspecto, não há discussão.

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Scrob Andreea
Entendemos, contudo, que, como a investigação científica está sempre avançando, é normal que se mudem termos e se ajustem concepções. É forçoso, portanto, observar que o poeta do Pau d’Arco, ao produzir a sua poesia, no lusco-fusco do século XIX para o século XX, estava sintonizado com o que existia de mais avançado na área das Ciências Biológicas, sobretudo com a Teoria da Evolução das Espécies, utilizando-a como um dos veios da sua poesia evolucionista. O outro veio é, naturalmente, a necessidade de evolução espiritual. E o poeta vai além, dominando conceitos como epigênese, por exemplo, ou conhecendo com admirável profundidade, as propriedades do carbono para a existência da vida humana na Terra.

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Egor Kamelev
Na nossa busca por estabelecer um léxico crítico para o poeta, escrevemos sobre o termo Quimiotropismo erótico, que ele utilizou, a partir das suas leituras do cientista alemão Ernst Haeckel (ver Correio das Artes, dezembro de 2023, p. 29-31 – “Um léxico crítico para Augusto dos Anjos – Parte V”, publicado no último domingo de janeiro de 2024), assunto a que retornamos, não apenas para mostrar a sintonia de Augusto com a Ciência de ponta da época, mas, sobretudo, para uma prova incontestável de sua intuição e da sua atualidade.

Em linhas gerais, retomando também o que já publicamos no Ambiente de Leitura Carlos Romero, vemos que Ernst Haeckel, ao tratar da fecundação humana, vai se referir a uma atração entre o espermatozoide e o óvulo, de um modo não muito convencional para a ciência da época, que ele chama de “quimiotropismo erótico” (Os Enigmas do universo, Capítulo IV – A nossa Embriologia –, p. 74, em tradução nossa da edição francesa de 1902):

“Entre os milhões de células-machos flageladas, que se espremem em enxame em torno do óvulo fêmeo, uma só penetra no corpo protoplasmático. Os núcleos das duas células (núcleo do espermatozoide e núcleo do óvulo) são atraídos um para o outro por uma força misteriosa considerada com uma atividade sensorial química, análoga ao odor: os dois núcleos se aproximam, então, um do outro e se fundem. Assim, graças a uma impressão sensível dos dois núcleos sexuais e em consequência de um quimiotropismo erótico, produz-se uma nova célula, que reúne em si as qualidades hereditárias dos dois pais; o núcleo do espermatozoide transmite os caracteres paternos, o do óvulo os caracteres maternos à célula-mãe, a cuja custa o gérmen se desenvolve; esta transmissão vale tanto para as qualidades corporais, quanto para o que se chamam as qualidades da alma.”

E Haeckel vai mais longe ainda, ao supor um “amor celular sexual”, reforçando a ideia do erotismo entre os protagonistas da fecundação, o espermatozoide e o óvulo (idem, Capítulo VIII – Embriologia da alma, p. 159-60):

“Assim que as duas espécies de células, em consequência da cópula, vêm a se encontrar, ou quando são postas em contato por uma fecundação artificial (por exemplo, nos peixes), elas se atraem reciprocamente e se abraçam estreitamente. A causa desta atração celular é de natureza química, é um modo de atividade sensorial do plasma, qualquer coisa de análogo ao odor ou ao gosto, a que damos o nome de Quimiotropismo erótico; também se pode muito bem (e isso tanto no sentido da química, como no sentido do amor romanesco) chamar isso uma ‘afinidade eletiva celular’ ou um ‘amor celular sexual’. Numerosas células flageladas, incluídas no esperma, nadam rapidamente para o imóvel óvulo e procuram penetrar no seu corpo. Como o demonstrou, porém, Hertwig (1875), normalmente, apenas um pretendente será favorecido e atingirá realmente o objetivo desejado. Tão logo este ‘animálculo espermático’ favorecido abriu com a sua ‘cabeça’ (isto é, seu núcleo celular) um caminho através do corpo do óvulo, este secreta uma fina membrana mucosa que o protege contra a penetração de outras células-machos.”

A atração entre o óvulo e o espermatozoide acontece, portanto, por um fenômeno físico-químico. Percebe-se que Haeckel, além do conceito científico de tropismo – um movimento orientado a um determinado estímulo –, reforça o sentido de Eros como força primeva germinadora, que une os contrários para a procriação da vida, conceito já existente na Teogonia do poeta grego Hesíodo (século VIII a. C.). Ao Eros hesiódico não se aplica o sentido que hoje lhe dão de concupiscência e sensualidade. Haeckel ao falar do quimiotropismo erótico procura, portanto, ressaltar essa força procriadora, seja no cosmos, seja nos seres vivos, mas particularmente no ser humano (idem, Capítulo VIII, Embriologia da Alma, p. 161):

“A causa dessa existência é bem antes e unicamente o Eros dos seus dois pais, esse poderoso instinto sexual comum a todas as plantas e a todos os animais pluricelulares e que os conduz a copular.”
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Os deuses do Olimpo (Sala dei Giganti - Mantua, Itália Giulio Romano (1528)
Já Augusto dos Anjos, seguindo as pegadas de Haeckel, repete a expressão no Eu, no poema “Os Doentes”, com um sentido para além daquele que o cientista lhe concedeu (Parte III, estrofe 22, versos 83-84):

Sentir, adstritos ao quimiotropismo Erótico, os micróbios assanhados Passearem, como inúmeros soldados, Nas cancerosidades do organismo!

O poeta do Eu emprega o termo com um sentido que entra em choque com um certo ideal do cientista alemão, fundamentado na sua teoria monística. O eu-poético, em uma angustiante noite de alucinações é impactado pela exposição, crua e expressionista, da degradação humana. A materialidade a que se apega o ser humano, arrasta-o a uma condição extrema de doente não só do corpo, mas sobretudo da alma. Consciente de que a alma doente adoece o corpo, o eu-poético anseia por um recomeço do processo evolutivo – “reduzido à plastídula homogênea” –, na esperança de que a natureza humana possa se modificar, o que estabelece um diálogo claro com o poema “Monólogo de uma Sombra” (Parte V, estrofes 54-5, versos 211-218):

“Anelava ficar um dia, em suma, Menor que o anfioxus e inferior à tênia, Reduzido à plastídula homogênea, Sem diferenciação alguma. Era (nem sei em síntese o que diga) Um velhíssimo instinto atávico, era A saudade inconsciente da monera Que havia sido minha mãe antiga!”

O ambiente que cerca o eu-poético desenha-lhe uma cidade de doentes, fazendo-o enxergar uma imagem distorcida da vida, resultante da exploração e da miséria, em que a conspurcação predomina, conduzindo à prostituição dos mais frágeis, como as mulheres e, sobretudo, as mulheres negras. Nessa situação de
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Pxb
escuridão noturna e de escuridão da alma humana, o eu-poético percebe que o quimiotropismo erótico, longe de ser apenas uma atração que leva à fecundação e à criação de um ser vivo, é também um instrumento de severa degradação do humano; de atração fecundadora, a vida tornou-se uma sujeição de “micróbios assanhados” às “cancerosidades do organismo”. A vida, como um milagre, oriundo de uma “afinidade eletiva celular” ou de “um amor celular sexual”, na escuridão em que o eu-poético se encontra, perdeu a batalha para a degradação que o apego da matéria provoca. É o peso de uma evolução natural que não acompanhou a evolução espiritual (“Os Doentes”, Parte I, estrofe 4, versos 12-14):

“E via em mim, coberto de desgraças, O resultado de bilhões de raças Que há muitos anos desapareceram!”

Como o nosso objetivo é mostrar a atualidade do conceito de “quimiotropismo erótico”, lançamos mão de uma compreensão global do poema “Os Doentes”, de modo a contextualizar criticamente o verbete. Sem operar a estagnação do sentido dos termos científicos, Augusto dos Anjos amplia a significação para a significância, essência da criação literária.

Onde estaria, então, a atualidade do conceito de quimiotropismo erótico? Em artigo veiculado pelos meios eletrônicos, intitulado “Como ocorre a fecundação? A nova visão da Ciência sobre a corrida dos espermatozoides ao óvulo”, datado de 19 de outubro de 2022, encontra-se, com outras palavras, aquilo que foi preconizado por Haeckel e poetizado por Augusto dos Anjos.

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Kristin Hook Linkedin
A bióloga evolutiva, Kristin Hook, pertencente à equipe de Ciência, Avaliação e Análise de Tecnologia do Government Accountability Office dos EUA, dirigindo-se à BBC News Mundo, refere-se a “postos de controle”, após a ejaculação, pelos quais os espermatozoides em boa forma deverão passar, para a possível fertilização. Estima-se que dos cerca de 250 milhões de espermatozoides ejaculados apenas algumas centenas chegam ao óvulo, é o que diz Daniel Brison, diretor científico do Departamento de Medicina Reprodutiva da Universidade de Manchester, no Reino Unido, ao considerar tal controle como “um processo de seleção muito importante”. Brison afirma, ainda que, mesmo se esforçando para obter a impulsão os espermatozoides não têm força suficiente para chegar ao final das trompas de falópio se não forem impulsionados pelas contrações do útero, cujas secreções “também podem modificar a trajetória dos espermatozoides, promovendo ou impedindo sua movimentação e alterando sua consistência”.

O que diz, em seguida, Virginia Hayssen, professora de Biologia do Smith College, nos EUA, é de suma importância para se entender a atualidade de uma concepção que surgiu no século XIX:

"É a ação mecânica do oviduto, assim como sua química — se tem um fluido salgado ou viscoso, ou um certo tipo de pH —, ambos controlados pelo sistema reprodutor feminino, que regularão como ocorrerá a concepção. Ou seja: qual espermatozoide vai poder chegar ao óvulo."

O mais importante está por vir, nas declarações de Filippo Zambelli e Virgina Hayssen, aquele um pesquisador do Grupo Eugin na Espanha, dedicado à reprodução assistida. Eles afirmam que não existe passividade do óvulo, assim como não há “espermatozoide vencedor”, que heroicamente nadou e suplantou os milhões que começaram com ele a sua jornada gloriosa. É a movimentação do óvulo, ajudado pelos cílios dentro da trompa, “secretando os chamados quimioatraentes (itálico nosso), moléculas químicas que atraem os espermatozoides e os guiam ativamente para ele”, que proporciona a chegada de, na maioria dos casos, apenas um dos milhões ejaculados. Os quimioatraentes – o quimiotropismo erótico de que fala Haeckel – são usados, a um só tempo, para a atração de um e para a repulsão dos demais, de modo a “modificar para onde vai cada espermatozoide", completa Virgina Hayssen.

Em suma, dizem os cientistas envolvidos, que “a união é na verdade um processo de interações mútuas em que ambas as partes desempenham um papel ativo e em que estão envolvidas uma série de receptores e substâncias químicas”, criando um ambiente propício, como diz Hayssen, para a produção do “melhor bebê possível”.

Com estas comprovações científicas, quero crer que ficam, em parte, resolvidas as questões da atualidade de Augusto dos Anjos, com relação ao uso de termos científicos na sua poesia. E afirmo que, sendo um visionário, ele foi mais longe, acreditando na formulação de Haeckel e, diferentemente do que se pensa, utilizando o léxico científico para além de uma simples transposição vocabular de um meio para outro. O que se verifica, na realidade, é uma consciência de sua concepção e da sua bem ajustada adequação à poesia, opondo-se, inclusive, ao tratamento que Haeckel dá ao termo, para aproximá-lo do uso corrente que o vulgo lhe empresta de mero desejo, de mera cupidez, para cumprimento e satisfação das exigências carnais. De maneira crua, Augusto dos Anjos expõe a degradação moral e espiritual a que o ser humano se entrega, quando pensa ser a vida apenas matéria destinada a corromper-se.

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  1. A inesgotabilidade dos grandes autores, como Augusto, mais uma vez demonstrada em seu impecável texto, Milton. Parabéns. Francisco Gil Messias.

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