As ironias capitalistas. O cemitério de Highgate, em Londres, está vendendo por 25 mil libras túmulos na proximidade da sepultura d...

Um túmulo perto de Marx

cemiterio karl marx
As ironias capitalistas. O cemitério de Highgate, em Londres, está vendendo por 25 mil libras túmulos na proximidade da sepultura de Karl Marx, ponto turístico da necrópole londrina. Ou seja, quem desejar descansar para sempre ao redor da celebridade terá que pagar caro por isso. Definitivamente, pode-se dizer então que o velho Marx é pop, do mesmo modo como a rainha Elizabeth II, do Reino Unido, também o foi, e assim por diante. Mais que isso: virou uma mercadoria, um produto de luxo, com bom valor de mercado. O fato comprova que ninguém escapa do chamado “establishment”.
Até o rebelde Bob Dylan, como se sabe, não resistiu ao Prêmio Nobel: fez charme, mas aceitou, ou seja, legitimou a tradicional honraria.

Artistas e intelectuais contestadores, sabe-se, são grandes consumidores, exibicionistas do sucesso comercial, moram em grandes mansões, possuem aviões, iates e carrões, joias etc. Esta é a regra, com raras exceções. E eles não acham paradoxal essa postura, digamos, frívola (e burguesa), não estão nem aí para a contradição de discursarem em defesa dos que passam fome e frequentarem os melhores restaurantes. Possuir um apartamento em Paris para as férias é apenas um detalhe.

O leitor apressado pode achar que, à primeira vista, as constatações feitas acima são ideológicas ou partidárias. Mas não. São apenas fatos amplamente divulgados pela mídia, ao alcance de qualquer celular. No máximo, e sem nenhuma pretensão intelectual do cronista, são, digamos, observações sociológicas amadoras, também ao alcance de qualquer pessoa medianamente informada. Mas voltemos ao tema.

O leitor pagaria para ser enterrado próximo a alguma celebridade, qualquer uma de sua eventual admiração? Eu não, vou logo afirmando, talvez sem muita paciência, desculpe. De maneira geral, se puder escolher, quero ter a maior distância possível
dessa tribo dos famosos, possuam méritos ou não. Que o poeta Drummond, por exemplo, repouse em paz lá no São João Batista, no Rio de Janeiro; jamais impor-lhe-ia, se tivesse oportunidade, minha presença, digo, minha ausência, já que de mortos estamos a falar. Qual o sentido disso, me pergunto. Vaidade? Obsessão por um ídolo? Necrofilia? Ou, quem sabe, um novíssimo mercado imobiliário para investimento?

Tudo é possível. Talvez possa surpreender que esse loteamento mortuário de que falo no início tenha surgido na capital inglesa, lugar tido como civilizado e infenso a certas vulgaridades mundanas. Poderia também ter surgido em Paris, é verdade, cujos cemitérios Père-Lachaise e Montparnasse, por exemplo, estão igualmente recheados de famosos, para todos os gostos. De Oscar Wilde e Jean-Paul Sartre aos cantores Jim Morrisson e Edith Piaf. Aqui no Brasil o fenômeno seria mais difícil, pelo menos no âmbito dos cemitérios públicos, dado o estado de abandono e degradação que costuma caracterizá-los, talvez em sua maioria. Por mais juntinho que seja de algum morto célebre, certamente não é fácil vender um terreno em meio ao lixo e ao vandalismo. Do mesmo modo, por exemplo, que não deve ser fácil vender uma casa próxima a um presídio, a um aterro sanitário, a um hospital … O entorno é determinante e qualquer corretor sabe disso.

cemiterio karl marx
S. João Batista, Rio Halley Oliveira, via Wikimedia, CC BY-SA 4.0
A propósito, o problema das necrópoles públicas brasileiras já foi assunto de crônica anterior, de tal maneira que o leitor pode achar um pouco (ou muito) mórbida essa insistência. Reconheço que o leitor pode tudo — ou quase. Mas sugiro, neste caso londrino, e para aliviar o peso, levar o tema pelo seu lado pitoresco, como mais uma excentricidade destes nossos tempos em que nada mais nos espanta. Nessa linha de amenidade, permita-me compartilhar uma saborosa história que me foi contada por Germano Romero. Seu pai, o nosso saudoso cronista Carlos Romero, e a esposa Alaurinda, numa das vezes em Paris, foram visitar o Père-Lachaise, programa quase obrigatório para eles na capital francesa, pois apreciavam bastante os aspectos artísticos e culturais da famosa necrópole, a qual, como a da Recoleta, converteu-se há muito em atração turística.
Tanto passearam e se distraíram que esqueceram do tempo, e quando deram por si já estava próxima a hora do local fechar. Pela grande extensão física do cemitério, não conseguiram encontrar facilmente a saída. Por sorte, viram um funcionário e, quase aflitos, perguntaram-lhe como fazer para deixar o lugar. O senhor então respondeu ao cronista, com um certo ar de graça: “Monsieur, aqui quem entra, nunca mais sai.”.

Como Germano me explicou, os espíritas não costumam cultivar os cemitérios, salvo artística e culturalmente, quando é o caso, já que não os consideram como endereço final dos mortos. Compreende-se perfeitamente. Mas, como lhe disse, tratando-se de lugares públicos, e revestidos de grande significado para muita gente, merecem, assim como os demais espaços da cidade, a devida atenção e o devido respeito por parte dos poderes competentes. Sem importar que sejam ou não a morada derradeira dos restos de Karl Marx, de Adam Smith ou de Chacrinha – ou apenas de simples mortais, como eu e talvez você, paciente leitor.

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  1. Anônimo5/2/24 08:48

    Com grande sensibilidade e aguda percepção do entorno, você amplia e aprofunda o problema da habitação, Messias. Entre vivos e mortos, o que vemos é sempre o descaso indomável com a morada humana, em todos os sentidos. Parabéns! Amanhecer com a leitura de um texto seu é um privilégio. Abraço, Nevita

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  2. Anônimo5/2/24 11:01

    Obrigado, Nevita.

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  3. Anônimo6/2/24 07:46

    Obrigado, Ana Maria. Francisco Gil Messias.

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  4. Anônimo6/2/24 07:46

    Obrigado, Milton. Gil.

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  5. Anônimo7/2/24 07:12

    Obrigado, Leo. Gil.

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  6. Anônimo7/2/24 07:12

    Obrigado, José Augusto. Francisco Gil Messias.

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  7. 👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏🪡✂️🧵

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