Não vou dizer que o tempo voa para não cair num lugar-comum. Pensamos e sentimos que o tempo voa ou passa devagar de acordo com nossas circunstâncias. Mas o tempo não voa nem retarda o passo; ele tem o seu tempo próprio e inalterável, a despeito de todos os relógios. O fato é que em 22 de fevereiro deste 2024 completa um ano da partida do filósofo, professor e escritor José Jackson Carneiro de Carvalho, símbolo inconteste da melhor intelectualidade paraibana e brasileira.
A morte das pessoas costuma deixar um vácuo, maior ou menor, não importa. Até os solitários sem teto e sem família deixam um vazio no mundo quando desaparecem. É assim com tudo que perece, seja humano ou não. Se formos ao extremo, uma simples folha que cai altera o universo, e assim por diante. É o tal rio de Heráclito. No caso particular do professor Jackson, além de sua falta para a família, há a sua falta para a cultura, ambas insupríveis. Claro que na cena cultural aparecerão outros atores, pois essa é a lei da vida, mas, também claro, nenhum com as especificidades pessoais e intelectuais dele, já que somos todos únicos em nossa individualidade personalíssima. Outros até poderão escrever sobre Camus, Malraux e Dostoiévski, por exemplo, mas jamais com o olhar e a sensibilidade jacksonianas.
Quero pensar que as instituições de que o filósofo Jackson participou se ressentem de sua ausência, reconheçam isso ou não. Penso também que é mais provável que as referidas instituições nem se detenham para o reconhecimento de sua falta. Infelizmente, sabemos, é assim que acontece, não só aqui na aldeia, mas no Brasil como um todo. Questão de incivilidade, de falta de respeito para com a história, a cultura, a tradição e as pessoas que as construíram ou ajudaram a construir. Mas nem tudo passa, essa é a verdade, principalmente os livros. Estes, em maior ou menor grau, desfrutam de uma certa perenidade, que os protege – e os seus autores – da nadificação do esquecimento. E o professor Jackson escreveu livros importantes, uma obra que se destaca entre nós por seu valor intrínseco, pela originalidade dos temas e da forma de tratá-los. Verdadeiro oásis de conhecimento e de inteligência, à altura da melhor produção paraibana, em todos os tempos.
Exagero? Creio que não. Basta olhar para trás e ao redor. Não que não tenha havido e não haja valores, mas a questão é que, por seu mérito, o ex-reitor da UFPB deve ser colocado entre os maiores, aqueles que fizeram e fazem diferença, aqueles que possuem dimensão para extrapolar os muros da aldeia, para orgulho e honra dos aldeãos.
Ele deu a mão a muita gente, das mais diversas maneiras. Existem muitos e muitas por aí que são devedores de gratidão para com ele, inclusive eu, beneficiário de sua generosa atenção. Tivemos uma relação de amizade que, se não foi longa nem íntima, valeu, entre outras razões, pela recíproca afetividade que cultivamos e pelo inestimável estímulo intelectual que dele recebi. Posso afirmar que sem ele este provinciano autor não existiria, o que, bem sei, seria e é indiferente para a província.
Penso, pelo que dele ouvi, que o seu vasto cabedal cultural era de base eminentemente francesa. Quando ia à capital paulista, geralmente uma de suas visitas infalíveis era à Livraria Francesa, centro de romaria dos francófilos brasileiros, onde abastecia sua biblioteca, comprando e encomendando obras de seu diversificado interesse. Sem falar nas regulares viagens a Paris. Daí seu interesse por Camus, por Malraux e mais recentemente por Luc Ferry, filósofo, ex-ministro de Estado da Educação da França e autor de vários livros. Lembro-me bem da noite em que Jackson como que apresentou aos seus confrades da Academia Paraibana de Filosofia, em reunião realizada no auditório da Fundação Casa de José Américo, o então mais novo livro do francês. O título era Aprender a viver – Filosofia para Novos Tempos (Editora Objetiva) e não esqueço a bem-humorada advertência que nos fez: “Vejam bem, o autor não é um aloprado qualquer; trata-se de um ex-ministro da Educação da França”. Curiosa é a aparente pouca influência da cultura italiana em alguém que viveu e estudou em Roma durante alguns anos, na mocidade. E digo aparente apenas pelo fato de não tê-lo ouvido citar muitos autores da Itália.. Talvez a preferência pela França e especialmente por Paris se deva ao fato de que, em comparação com a “cidade eterna”, a “cidade-luz” tenha representado para ele uma espécie de “libertação”. A professora Célia, sua esposa, companheira de vida e ciosa guardiã de seu legado, certamente poderá falar mais a esse respeito.
Lembro-me também da visita que o professor João Ricardo Moderno, então presidente da Academia Brasileira de Filosofia fez ao presidente de sua congênere paraibana, o que prova o prestígio do nosso Jackson. Em meio à extensa programação preparada para recepcionar o ilustre visitante, nosso filósofo me pediu para levar o Moderno para almoçar em um dos restaurantes da cidade, pois ele estava, por alguma razão de que não lembro, impedido de fazê-lo. E lá fui eu, juntamente com Cleanto Gomes, a quem convidei para acompanhar-nos, fazer sala ao pensador carioca. A sorte que é a simplicidade e a simpatia deste último facilitaram muito nossa missão de relações públicas improvisados. A boa conversa fluiu sem problemas, certamente com a ajuda do vinho e do uísque, indispensáveis. Esta foi apenas uma das várias deferências que recebi do generoso amigo mais velho.
O professor Jackson pertenceu a uma geração anterior à minha. Só isto poderia constituir um obstáculo ao nosso encontro. Mas o destino, se é que existe, decidiu que havíamos de cruzar nossos caminhos. O dele, brilhante e cosmopolita; o meu, opaco e aldeão. Assim é a vida e os seus mistérios. O fato é que, nesse encontro, saí ganhando mais que ele, estou certo. Ou talvez estivesse escrito (Maktub, dizem os árabes), para que agora este modesto escriba o lembrasse neste primeiro ano de sua ausência física.
As instituições de que fez parte e a que deu brilho com sua presença qualificada há muito deixaram de ser o que já foram. Não direi se mudaram para melhor ou pior. O leitor tem a palavra. Tudo muda, a vida segue. Mas nada justifica o desleixo para com a memória, mãe da história e da cultura.
Na Paraíba, mais que em qualquer outro lugar do mundo, a posteridade é incerta. Diz-se que nossa terra é uma sepultura de reputações. Deve ser a mesquinha inveja dos pigmeus vivos relativamente aos gigantes mortos. Onde a grande avenida Augusto dos Anjos? Ou Celso Furtado? Ou Ariano Suassuna? Não fosse o Espaço Cultural do governador Burity, mais intelectual que político, onde o monumento a José Lins do Rego? Sim, sepultura de reputações, infelizmente.
Faz falta um professor Jackson, assim como tantos outros e outras que davam vida à cultura paraibana.Todos fazem jus à preservação de sua memória, pois constituem nossa riqueza única, a humana, mais alta e imperecível que as outras que não temos. Não os esqueçamos. Façamos a nossa parte.