Branquinho feito algodão, aquele inhame. E quase tão macio. Estava, ali, na mais fumegante das três panelas de barro. A segunda continha arroz e, a terceira, uma cabidela cozida ao ponto do desmanche na boca. À primeira garfada, percebi o cominho, a pimenta, o alho, a cebola e o coentro na medida correta. E um fundinho avinagrado à perfeição. A dona de tais preparos nascera para isso.
Lembrei da origem desse prato que o Nordeste brasileiro herdou e melhorou assim que a receita saiu da mala das famílias portuguesas aqui desembarcadas nos idos da colonização. Os que medem esse tempo dizem que isso ocorreu em princípios do Século 17. E disso eu não duvido, pois certos aperfeiçoamentos dão-se ao cabo de muitas gerações. Seria assim, certamente, com o equilíbrio dos temperos e com a porção exatíssima de sangue na qual fora cozida aquela ave.
Em Portugal, evidentemente, as galinhas não ciscam a caatinga, não beliscam os bichinhos dos nossos pátios, as ramagens do inverno nem os arbustos da seca. Não têm as carnes rijas das que enfrentam cobras e carcarás na defesa dos ovos e pintinhos. Sem dúvida, é o que, também, nos melhora o prato. Enfim, as que lá cacarejam não o fazem como as daqui. Não é, Gonçalves Dias?
Os três fogareiros com carvão em brasa equilibravam-se num banco estreito e curto a meio metro do chão. Espantava-me que o simples tremor da fervura não os derrubasse. Nem isso nem o vai e vem dos feirantes. A freguesia ainda não superlotava o lugar por ser muito cedo. Assim o faria, tão logo o sol raiasse e tangesse as estrelas.
Poucas vezes, como naquela, tive a sensação de estar no ambiente certo, na hora exata. Problemas de ordem profissional me haviam tirado o sono, de modo que decidi fugir da casa que sempre me acolhia quando das frequentes visitas à minha gente. O impulso que me tirou da cama fora acelerado por velhas lembranças: a do retorno à casa paterna desde o Recife para as férias escolares, a do barulho advindo das tendas que lá fora se armavam para o comércio de sapatos, roupas, utensílios, verduras, legumes e cereais e, ainda, a do cheiro das frutas desembarcadas dos caminhões. Os abacaxis, no meu tempo de menino, eram vendidos à beira da nossa calçada. Curiosamente, estavam, agora, defronte à do primo com quem cresci e a quem tive como irmão. Foi desse fruto o primeiro aroma que me veio ao nariz e à alma.
O inhame e a galinha de cabidela ferviam do outro lado, em frente ao Mercado Público, este sim, o templo sagrado das carnes diversas, da picanha ao cabrito. A avó que então cuidava daquilo acompanhava-se de um jovem casal. Bem nova, a menina exibia uma barriga de cinco meses. O marido, com espinhas de adolescente na cara, encarregava-se da arrumação da mesa pesada e comprida e dos tamboretes. Sentei-me num deles e puxei conversa.
A avó e a neta provinham de uma família conhecida por meus pais e da qual herdaram o jeito, o tino e a mão para o “hotel de rua”. Ainda chamavam assim, para espanto meu, o negócio sempre resumido ao preparo e à oferta de refeições, essencialmente, aos que ali montavam as tendas da feira livre. Esta era mesmo a sua principal clientela. Quando a cidade acordasse, todos já se teriam servido de farto café da manhã. O inhame e a galinha por mim escolhidos eram parte pequena do cardápio no qual não faltavam macaxeira, batata, cuscuz, sarapatel, carnes ensopadas e assadas.
Seis ocasionais companheiros sentaram-se comigo àquela mesa. Tinham em bom humor o que tinham de fome. Os pratos que pediram, de tão volumosos, quase me mataram de inveja. Individualmente, em pouquíssimo tempo, mandaram para a barriga o triplo daquilo que eu demorei para comer.
Como foi bom escutar aquela gente, saber de suas vidas e suas artes, de filhos que nasciam ou partiam, da esperança de chuva, da confiança em dias melhores. Não ouvi de qualquer deles a mínima reclamação. Saí dali a fim de ver outras tendas e artigos ciente de que a amargura e a aflição não sobrevivem entre cocada, goiabada, mel de engenho, pé-de-moleque, bolo de leite, queijos diversos e manteiga de garrafa.
Certo, também, do quanto eles podem ensinar aos passageiros da agonia, aos que sem descanso perseguem o dinheiro e o sucesso ao custo da saúde e do equilíbrio emocional. De algum modo, parecem entender que a casa mais ampla, o aluguel salgado, o carro novo, o compromisso inadiável e a estabilidade no emprego somente vão à cama e à mesa dos que aprenderam a engolir sapos.
Ir até eles, puxar conversa com temas ao léu, saber dos tempos da colheita e do plantio, coisas possíveis num hotel de rua sob céu ainda estrelado, é fazer bons amigos. É tornar mais leve uma carga pessoal que ninguém deseja e não compra pois feita de problemas.
Acho que as panelas buscadas, hoje em dia, nos Mercados Públicos por gente com saldo bancário gordo contêm o remédio faltoso ao psicólogo e à farmácia. Isso não deve compor à toa o roteiro do turismo moderno nem virou moda, sem mais nem menos, entre os moradores de médias e grandes cidades. Não é não?