Voltaram ao calcário original, raspados a cinzel, os pelicanos do Cruzeiro. Os atuais guardiães da obra franciscana, o mais precioso monumento sacro da Paraíba, conseguem motivar pessoas e instituições para a conservação da nossa principal riqueza artística. E prossegue o apelo na televisão, o que é um bom sinal.
Olho agora de uma janela da Academia de Letras, no mesmo vão em que me debrucei, uma tarde, com Luiz Augusto Crispim, ele presidente da Casa, a bem dizer na flor da idade, o que não impedia de sairmos de mãos para trás, como dois velhos, atraídos para estudar de perto os pelicanos que ornam os pés do Cruzeiro. As paredes laterais revestidas de azulejos ainda conservavam a maioria das figuras dos Passos em seus nichos. Quanto à azulejaria, o mais que se consegue hoje será a preservação das ruínas.
Dias depois Crispim vale-se das palavras mais simples para dizer das nossas impressões sobre aquele detalhe no conjunto do monumento. Desde o adro com seus degraus em curva ritmada, sacramentado pelo Cruzeiro, até o interior majestoso e ao mesmo tempo simples de um barroco único, segundo vira antes Mário de Andrade ciceroneado por Ademar Vidal.
Crispim falava e escrevia com uma claridade! Quem me chamou a atenção sobre essa particularidade dele não foi nenhum dos nossos ensaístas literários. Foi meu saudoso amigo Manuel Procópio, seu colega de advocacia, com este rápido comentário: “Ele conversa como escreve, tudo brotando naturalmente, mas com jeito de livro”.
E vejo-me a reatar momentos de toda uma vida de conversa, de mútua afinidade, desde que fui convidado por José Souto, diretor de “A União”, a acompanhar na velha gráfica a impressão de “Por uma estética do real”. Crispim já se denotava inconfundível ainda que se visse misturado às folgas liberadas das redações.
Trazia o lustro das suas leituras não só para a matéria escrita como para a comunicação cotidiana. Lembrava-me, em tamanho tropical e em versão morena, aquele Adriano que tanto o enfeitiçou redescoberto pela romancista Marguerite Yourcenar.
Escreveu classicamente desde a primeira crônica. E deitou esse estilo, sem prejuízo do lírico, pelos caminhos de uma cidade desprotegida dos roteiros turísticos mas universalizada por uma linguagem da melhor bem-querença do leitor.
Folheada de livro em livro, toda a sua obra é um cântico a esta cidade. Sem tristeza nem dor, sem grande melancolia, o mais que tinge de sombra e crepúsculo o seu modo de olhar as ruas da sua ternura é a expiação de “pecados esculpidos na tarde, na pedra e nas culpas de toda a humanidade”.
No mais, da crônica à poesia, é tudo uma radiosa pastoral. Quando não, uma visão de indulgente ironia com as riquezas que fazem o orgulho e o bem-viver das elites a que ele pertenceu.
“Não faço caso de mágoas
senão das mágoas que bem quero
das mágoas do meu bem-querer
por onde se desfazem as querenças
de todos os bens que, na vida
me fizeram tanto bem”.
Da vez em que se queixa de alguma amargura ou de súbita maldição, transfere-a para a rocha:
“Os pelicanos do Cruzeiro
roerão o próprio fígado
e terão morte de pedra
porque pétrea é a sorte
dos mitos e dos homens
que não conseguem voar”.